A controvérsia em torno da história do memorial a John Lennon

A controvérsia em torno da história do memorial a John Lennon


Existe no Central Park, em Nova Iorque, perto do local onde o John Lennon foi assassinado, uma calçada dedicada à música Imagine. Agora que a calçada portuguesa é candidata a património mundial da humanidade, continua a haver referências que reclamam que o trabalho é italiano. O jornalista Luís Pinheiro de Almeida, especialista em Beatles, garante…


Uma rosácea em forma de mosaico com a palavra Imagine ao centro. Uma contribuição portuguesa ou italiana? Em alguns sites lemos que essa foi a grande contribuição de Portugal à homenagem feita por Yoko ao seu marido John Lennon, aquando da sua morte. Noutros, diz-se que o mérito é dos italianos. Agora, com a proposta de inscrição da Arte e Saber-Fazer da Calçada Portuguesa no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, qual é mesmo a história deste exemplar do outro lado do atlântico? O jornalista Luís Pinheiro de Almeida, autor de livros referentes à banda Beatles, investigou a contenda e acredita que não há dúvidas. Já o fotógrafo e escritor Ernesto Matos diz que não e o ex-vereador municipal António Prôa afirma que é um excesso dizer que a obra é portuguesa.

A ligação entre a banda Beatles e Portugal não é evidente, mas a verdade é que para além de ter servido de inspiração para algumas músicas como é o caso de Yesterday, escrita nas margens do rio Mira, no Alentejo, e de Penina, canção composta em 1968 por Paul McCartney no Algarve, tal como se lê no livro Beatles em Portugal do jornalista e escritor Luís Pinheiro de Almeida e Teresa Lage; após o assassínio de John Lennon, diz-se que Portugal foi um dos países convidados por Yoko Ono, viúva do artista, para dar a sua contribuição aquando da construção do Memorial Strawberry Fields, uma grande área na entrada Oeste do Central Park transformada num jardim em homenagem a John Lennon.

 

A LIGAÇÃO DE JOHN LENNON COM O CENTRAL PARK

A escolha do Central Park para a homenagem não foi por acaso. Há 41 anos, John Lennon foi tragicamente assassinado por Mark Chapman à porta do edifício Dakota, onde residia com a sua esposa. Naquela altura, dada a proximidade, o Central Park era quase como um quintal de casa para o casal. Era lá que passeavam de mãos dadas e foi inclusive o sítio escolhido para a gravação do videoclipe da música Woman, do álbum Double Fantasy, uma semana antes da sua morte.

Numa entrevista dada à New Yorker, em 1993, Yoko Ono admitiu que investir no parque já era um desejo partilhado do casal: “Nas filmagens para o clipe da música Woman chegámos a conversar sobre o facto do parque ser um lugar triste, abandonado e pouco cuidado (…) Eu propus a John em doarmos algum dinheiro para o investimento e ele concordou”, contou. O que não imaginava é que seria ela mesmo a dar vida ao local, na ausência do seu companheiro.

 

PORTUGAL NO MEMORIAL STRAWBERRY FIELDS

Cinco anos depois da sua morte, em 1985, Yoko Ono inaugurava o Memorial Strawberry Fields, uma grande área na entrada Oeste do parque transformada num jardim para lembrar o marido. A homenagem contou com contribuições do mundo inteiro depois da viúva ter feito um apelo internacional para perpetuar a memória de Lennon e a sua mensagem de paz ao mundo. É aqui que entra a polémica: A quem deve ser dado o mérito da rosácea em forma de calçada? Lê-se em alguns sites que Portugal, ofereceu os seus préstimos através da mão-de-obra de dois calceteiros portugueses a pedido do cônsul Inácio Rebello de Andrade, vizinho do casal. Mas, noutros, a referência é feita a artesãos italianos.

 

A ESTADIA DE PORTUGAL EM NOVA IORQUE

Em 1956, o Estado português comprou o 7.º andar de uma das alas do edifício Dakota para instalar a residência oficial dos cônsules gerais em Nova Iorque, primeiro Inácio Rebello de Andrade e depois António Syder Santiago. “Um apartamento esplendoroso, magnífico, onde eu estive a explicar ao Mário Soares toda a história do assassínio de John Lennon”, conta ao i, Luís Pinheiro de Almeida.

Apesar de em dezembro de 1980, data em que John Lennon foi assassinado pelo fã Mark David Chapman, o cônsul português Inácio Rebello de Andrade, se encontrasse em Lisboa, 15 anos depois, em 1995, contou à Lusa como é que o porteiro do prédio, um cubano chamado José, falou com o assassino de Lennon. O cônsul afirmou que o porteiro foi abordado por Chapman que lhe pediu que identificasse o ex-Beatle e, logo de seguida disparou. José perguntou ao assassino: “Sabe o que fez?”. E a resposta foi: “Sim, matei o John Lennon mas não o vou matar a si. Vou ficar à espera da polícia”, revelou o cônsul.

Até janeiro de 1981 Inácio Rebello de Andrade lembra-se de ver Sean Lennon, filho de John Lennon e Yoko Ono, a andar de bicicleta no pátio, mas não se chegou a encontrar com Lennon que, na altura, tinha 5 apartamentos no Dakota. Destacado para a Austrália, Andrade foi, logo a seguir, substituído pelo cônsul António Syder Santiago que, em dezembro de 1981, se mudou para o Dakota.

Quatro anos mais tarde, em 1985, quando Yoko Ono pediu que cada país contribuísse com uma homenagem, para assinalar aquele que seria o 45.º aniversário de John Lennon “o cônsul Syder Santiago contactou Nuno Krus Abecasis, presidente da Câmara Municipal de Lisboa na altura”. “A ideia agradou-lhe e o objetivo era contribuir com algo diferente (…) Para isso, delegou o projeto de uma rosácea em calçada portuguesa aos arquitetos Eduardo Xavier de Oliveira e Pedro Formosinho Sanches”, afirma Luís Pinheiro de Almeida. Segundo o jornalista foi o próprio cônsul Syder Santiago que contratou dois calceteiros para realizar o trabalho.

O jornalista revela também que tem feito um trabalho de pesquisa em busca dos nomes dos dois calceteiros responsáveis pela obra, mas que até hoje, não existem registos na Câmara Municipal de Lisboa: “Falei com a Luísa Ornelas que era a diretora da escola dos calceteiros de Lisboa e ela disse-me que andou à procura dos arquivos e não encontrou nada, mas que provavelmente o cônsul português teria contratado dois calceteiros exteriores à câmara daí não existirem registos”. A verdade é que nessa altura existiam imigrantes portugueses em Nova Iorque e será possível que o cônsul português os tenha contratado.

 

A CONTROVÉRSIA EM TORNO DA OBRA

O nome de Portugal consta da extensa lista de países a quem Yoko Ono e Nova Iorque agradecem a contribuição que está fixada numa rocha de Strawberry Fields. Contudo, apesar de haver a prova da contribuição de Portugal na tal rocha de agradecimentos não é certo que a rosácea seja portuguesa. O jornalista revelou que num livro escrito por Ernesto Matos, a propósito da calçada portuguesa no mundo, também o escritor afirma que a rosácea que se encontra no memorial foi feita por artesãos italianos: “Quando vi no livro do escritor Ernesto Matos escrito que a rosácea tinha sido realizada por artesãos italianos, fiquei furioso, porque vai contra todos os factos (…) Aliás há lá uma placa com o nome dos países que participaram dessa homenagem, incluindo Portugal”, admite.

O i contactou o  escritor e Ernesto Matos manteve a sua afirmação: “Essa é uma questão em que eu no início também fui enganado, dado o boato desse pavimento artístico ter sido feito por portugueses e ser de calçada (…) Depois de investigar e de ter ido ao local confrontei-me não com uma calçada à portuguesa mas sim com um painel de mosaico ao puro estilo italiano”, alegou o escritor.

Ernesto Matos explica que dadas as notícias da comunicação social da altura, a rosácea tratou-se de uma oferta da cidade de Nápoles para a contribuição desse espaço memorial no Strawberry Fields de Nova Iorque e “não tendo conseguido encontrar referências a calceteiros portugueses que lá tivessem ido”, contactou o cônsul afirmando ter por por escrito “a comprovação de como esse pavimento não é de origem portuguesa”.“Se fosse feito por artesãos portugueses, esses teriam lá ido fazer um grande favor não à cultura nacional mas sim à italiana, dado o painel ser de mosaico”, exalta o escritor. Segundo o fotógrafo especialista em calçadas, o tamanho das pedras é de um centímetro e o desenho é uma réplica de um clássico romano. “Será que já comparamos a calçada portuguesa com o mosaico italiano? Queremos meter tudo no mesmo saco? Em Nova Iorque há imensos mosaicos por toda a parte, inclusive no metropolitano, desse ponto de vista, será tudo calçada portuguesa?”, interroga Matos.

 O escritor acrescenta ainda que esta situação tem na base a “ganância de alguns calceteiros de secretária que parecem ainda não saber o que é a calçada artística à portuguesa” e isso “até desvirtua o nosso legado cultural que há tantos anos empenhamos e sacrificamos”.

Mas Luís Pinheiro de Almeida apresenta outras provas contrárias às do escritor: “Na altura em conversa ao telefone com o arquiteto Pedro Formozinho Sanchez tive mais uma vez a confirmação que tinha sido ele o responsável pelo projeto original de Eduardo Xavier de Oliveira”, confirma.

António Prôa, ex-vereador municipal e secretário-geral da Associação Calçada Portuguesa (ACP), ao i, explica que “é um excesso dizer que a calçada é portuguesa”. O ex-vereador, contou que é verdade que na década de 80 houve um contacto por parte de entidades americanas à Direção Geral do Turismo para a contribuição na homenagem, mas que provavelmente “a obra não foi concretizada por questões financeiras”. “O projeto pode ter sido realizado por arquitetos portugueses, mas calcula-se que houve recurso a mão-de-obra italiana”, afirma.

 

CALÇADA PORTUGUESA A PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL

“A calçada é uma expressão artística, um elemento histórico, cultural e identitário da cidade e do país”, afirma António Prôa.  No dia 19 de março, a associação apresentou ao Ministério da Cultura a proposta de inscrição da Arte e Saber-Fazer da Calçada Portuguesa no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial.

A base da candidatura “está na génese da calçada portuguesa que pretende protegê-la e promovê-la”. Segundo o secretário-geral da associação “temos um plano que visa a proteção e promoção em primeiro lugar num plano imaterial, ou seja, no que diz respeito ao saber fazer a calçada”. A consciência de que existe um declínio na qualidade dos profissionais calceteiros leva-o a concluir que há, de facto, “um risco sério de descontinuidade na transmissão deste saber fazer”. Portanto, o ponto de partida foi precisamente propor “que o saber fazer da calçada portuguesa seja património imaterial nacional, para começar por mudar o panorama do declínio desta profissão”, informa o ex-vereador municipal.

A calçada portuguesa, tal como a conhecemos, nasceu em Lisboa, em meados do século XIX e rapidamente se espalhou não só por todo o país, como também por todo o mundo, especialmente nas cidades com influência portuguesa. Hoje com expressão nos quatro cantos do mundo está sempre associada a Portugal e aos portugueses. “Na altura as condições sociais faziam com que houvesse uma maior facilidade de encontrar pessoas disponíveis para abraçar esta profissão”, lembra o secretário-geral da associação. No início, a profissão tinha outra valorização, havendo uma diferenciação desse saber e uma progressão na carreira. Atualmente essa distinção não existe, acabando por “contribuir para torná-la menos atrativa tanto por ser dura, como por não ser valorizada e mal remunerada”. “Hoje em dia, a Câmara Municipal Lisboa e julgo que é transversal à realidade das câmaras municipais, um calceteiro não tem possibilidade de progressão na carreira e, portanto, um aprendiz de calceteiro ganha o mesmo que um mestre calceteiro”, exemplifica o ex-vereador municipal.

Com a valorização da calçada enquanto expressão artística, António Prôa declara que o desejo da associação é que se valorize toda a cadeia, desde quem a faz até quem a aplica.  “Nós não devemos desistir de algo que faz parte da nossa história”, sublinha.

O deputado municipal afirmou ainda que num passo seguinte o objetivo é apresentar na Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) uma candidatura da calçada portuguesa a Património Cultural Imaterial da Humanidade, à semelhança daquilo que sucedeu com o fado.

 

A VALORIZAÇÃO DA CALÇADA DESDE A INFÂNCIA

A calçada portuguesa é, para muitas pessoas, associada à ideia de desconforto pela sua irregularidade e, por isso, tem sido substituída por outros tipos de pavimentos. “A calçada só persistirá se for compatível com a exigência das pessoas, porque estas a usam todos os dias”, informa o secretário-geral da associação. Para ele, esse problema está relacionado com a qualidade da aplicação e a manutenção da calçada e “se nós não tivermos calceteiros bem formados e em quantidade suficiente não é possível manter a calçada em boas condições”. “Desejamos que as pessoas valorizem esta arte e que a entendam como parte da nossa identidade”, acrescenta.

Na proposta  existe um conjunto de medidas de salvaguarda, algumas delas destinadas à área da educação e formação do ponto de vista da população. “Uma das propostas prende-se com a definição de módulos que possam ser partilhados nas escolas desde as idades mais jovens, precisamente para chamar a atenção dessa importância”, finaliza. 

*Texto editado por Marta F. Reis