“Será que as conhece?” Assim começa a Carta Aberta à Presidente da Câmara Municipal de Almada promovida pelo MuDHa – Movimento de Mulheres pelo Direito à Habitação.
“Elas” são Eulália, 72 anos, com uma reforma de 257 euros e que estava a dormir num carro; Emília, 52 anos, que trabalha nas limpezas mas o que ganha não é suficiente para pagar a renda de uma casa onde vive com as filhas e a mãe acamada; e Vanessa, 30 anos, mãe de três filhos com 10 anos, 4 anos e sete meses. A reportagem diz que “Eulália, Emília e Vanessa não tinham como pagar uma renda no mercado de arrendamento tradicional e ocuparam casas fechadas em prédios da Câmara de Almada. O Município avançou com queixa-crime por arrombamento e ocupação abusiva”.
Assim começa a história que vai amanhã a julgamento no Tribunal de Monsanto com a Presidente Inês de Medeiros no papel de acusadora. No banco dos réus sentam-se famílias pobres que ocuparam duas dezenas de casas municipais em Almada, um dos municípios do país que mais combina carências habitacionais com ausência de respostas públicas. Aqui chegados, e antes de continuar, não se pode ignorar que este caminho foi uma escolha. Os processos de despejo não correm em tribunais criminais, a violência psicológica e social de uma queixa crime teria como alternativa ações civis com que a Câmara pudesse tentar chegar a acordo e recuperar as casas sem recorrer à chantagem contra quem nada tem.
Às famílias restou recorrer a um advogado e a esperança num Direito que não seja feito por máquinas nem aplicado por algoritmo. A ordem jurídica preserva uma hierarquia de valores, procura garantir direitos individuais e coletivos e proteger da ilicitude ou da culpa quem age por essa necessidade. Nesse sentido é menos selvática do que uma Câmara Municipal que age com a lógica e a violência de um proprietário privado.
Mas o município não é um proprietário privado. E portanto não se trata apenas de perguntar em que circunstâncias é que o património cede ao drama humano. A censurabilidade do ato de ocupar uma casa municipal vazia para procurar abrigo deve ou não ceder perante a culpa de uma entidade pública que falhou a missão constitucional e o dever jurídico de proteger o direito à habitação daquelas pessoas?
Pior, ficará a Câmara desobrigada desse dever se as pessoas forem condenadas e, além da multa, forem para a rua em plena pandemia? O que fará então a autarquia? Negar-lhes humanidade por serem “criminosas” ou acolhê-las, como é sua obrigação, hipocritamente ignorando que foi a própria que as despejou? Que bem – individual ou comum – é que este julgamento pretende preservar ou poderá alcançar? Qual é a boa saída, a saída justa?
A armadilha foi autoinfligida e o isco foi o preconceito de quem governa e que corrompeu a hierarquia de valores que devia presidir à gestão da coisa pública. É escusada a tentativa de resolver problemas sociais pela força da polícia e dos tribunais, uma política já patenteada pela extrema direita na insinuação de que há pobres bons e pobres maus.
Não vale a pena desviar o debate para outros assuntos, mais ou menos legítimos, quando o problema é a insensibilidade social de quem avançou para esta queixa-crime e decidiu acrescentar sofrimento e exclusão a tantas vidas difíceis. É inútil tentar apagar fogo com gasolina.
Eu conheço-as, a Eulália, a Emília e a Vanessa. As histórias da sua pobreza não serão iguais às de todos os outros mas não há bem no mundo que comece por essa distinção. Mais fácil é distinguir entre bons presidentes de Câmara e maus presidentes de Câmara.