Como nuvem passageira…


Parece que Marinho Peres já não sabe mais quem é o Marinho Peres. Veio o desgraçado do alzheimer e comeu-lhe a memória, deixando-o vazio como um bebé acabado de nascer mas sem futuro.


A primeira vez que vi Marinho Peres foi pela televisão. No Mundial de 1974, num Brasil sarrafeiro, com ele, peitudo, até capitão de equipa, lá no meio do meio-campo, desfazendo os infelizes que queriam invadir o seu quadrado de terreno. Depois foi para o Barcelona de Cruyff, aproveitando ter pai espanhol, ganhando dupla nacionalidade. Mas Franco não quis saber daquele espanhol-brasileiro que parecia uma árvore no meio do campo do Barça, uma árvore frondosa, nogueira, castanheiro ou assim, e mandou-o para a tropa. Marinho não quis nem saber da farda e voltou para o Brasil.

Em 1986 chegou a Portugal para treinar o Guimarães e ficámos amigos. Amigos de amigos, palmada valente nas costas, dava com força aquela mão bruta: “Como é? Fala garoto!”. E a gente na conversa, horas e horas, milhões de histórias que tinha para contar. Quando treinou o Sporting, às vezes chamava-me para ficar a ver o treino a seu lado, sempre galhofeiro mas sempre de mal com quem fazia mal o que ele queria bem feito: “Cara! Tá vendo? Sempre em impedimento aquele ali. Vá tomar no cu dele!” Depois passava-lhe como nuvem passageira que com o vento se vai e ficava só o Marinho de rir, beber uma cervejinha com o seu compincha, Nené, e eu acumulava histórias dele no Santos, no Internacional, na equipa do Brasil derrotada de cima abaixo pela Holanda: “A gente não sabia porra nenhuma da forma deles jogarem. Então veio a porrada mesmo. Mas o magrinho do Cruyff não tinha jeito de apanhar, corria demais. Vá lá tomar no cu dele!”.

Todo ele era assim, rude e cru, mas de coração de cristal bonito que se quebra quando cai. O Marinho já não sabe que é Marinho. Eu sei! Com aquele orgulho grande de ser seu amigo, vendo a vida correr contra o tempo até ao dia que o maldito do alzheimer desfez um homem grande, por fora e por dentro, como um castelo de areia na beira do mar.


Como nuvem passageira…


Parece que Marinho Peres já não sabe mais quem é o Marinho Peres. Veio o desgraçado do alzheimer e comeu-lhe a memória, deixando-o vazio como um bebé acabado de nascer mas sem futuro.


A primeira vez que vi Marinho Peres foi pela televisão. No Mundial de 1974, num Brasil sarrafeiro, com ele, peitudo, até capitão de equipa, lá no meio do meio-campo, desfazendo os infelizes que queriam invadir o seu quadrado de terreno. Depois foi para o Barcelona de Cruyff, aproveitando ter pai espanhol, ganhando dupla nacionalidade. Mas Franco não quis saber daquele espanhol-brasileiro que parecia uma árvore no meio do campo do Barça, uma árvore frondosa, nogueira, castanheiro ou assim, e mandou-o para a tropa. Marinho não quis nem saber da farda e voltou para o Brasil.

Em 1986 chegou a Portugal para treinar o Guimarães e ficámos amigos. Amigos de amigos, palmada valente nas costas, dava com força aquela mão bruta: “Como é? Fala garoto!”. E a gente na conversa, horas e horas, milhões de histórias que tinha para contar. Quando treinou o Sporting, às vezes chamava-me para ficar a ver o treino a seu lado, sempre galhofeiro mas sempre de mal com quem fazia mal o que ele queria bem feito: “Cara! Tá vendo? Sempre em impedimento aquele ali. Vá tomar no cu dele!” Depois passava-lhe como nuvem passageira que com o vento se vai e ficava só o Marinho de rir, beber uma cervejinha com o seu compincha, Nené, e eu acumulava histórias dele no Santos, no Internacional, na equipa do Brasil derrotada de cima abaixo pela Holanda: “A gente não sabia porra nenhuma da forma deles jogarem. Então veio a porrada mesmo. Mas o magrinho do Cruyff não tinha jeito de apanhar, corria demais. Vá lá tomar no cu dele!”.

Todo ele era assim, rude e cru, mas de coração de cristal bonito que se quebra quando cai. O Marinho já não sabe que é Marinho. Eu sei! Com aquele orgulho grande de ser seu amigo, vendo a vida correr contra o tempo até ao dia que o maldito do alzheimer desfez um homem grande, por fora e por dentro, como um castelo de areia na beira do mar.