Depois de o Presidente norte-americano Joe Biden apontar o 4 de julho para o “regresso à normalidade” nos Estados Unidos, foi a vez de um comissário europeu fixar uma data simbólica: Thierry Breton, comissário europeu para o Mercado Interno, uma das pastas envolvidas na compra de vacinas a nível europeu, disse ser possível que o continente europeu atinja a imunidade coletiva a 14 de julho, Dia da Bastilha e feriado nacional no seu país natal. Com o anúncio, a garantia de que a União Europeia vai receber mais 300 a 350 milhões de doses de vacinas até lá além das que já foram distribuídas pelos Estados-membros – e essa, além da expectativa, foi a única indicação nova.
O i tentou perceber junto do gabinete do comissário europeu o que fundamenta a projeção, mas não obteve resposta. Também as autoridades nacionais, que têm apontado a meta de garantir pelo menos uma toma da vacina a 70% da população adulta até ao final de agosto, não se pronunciaram e nem a DGS, nem o Ministério da Saúde nem a task-force nacional de vacinação explicaram se o 14 de julho é agora a data em cima da mesa em Portugal. O que está em causa? O virologista Pedro Simas considera “irrelevante” falar de imunidade de grupo a esta altura, mas não afasta que a meta de Thierry Breton seja possível, desde que haja vacinas (e sobre isso todos os dias há avanços e recuos na UE, agora com uma quarta vacina aprovada e a russa em avaliação pela Agência Europeia do Medicamento). Pedro Simas defende que deviam estar a ser dadas nesta fase apenas aos grupos de maior risco, a população acima dos 70 anos, que representa 87% das 16784 vítimas de covid-19 em Portugal desde o início da epidemia e considera um erro estratégico incluir pessoas mais novas na vacinação, como professores, se implicar vacinar mais tarde pessoas mais velhas.
IMUNIDADE DE GRUPO: o que está em causa afinal? O conceito de imunidade de grupo passou a fazer parte da equação da pandemia no ano passado, ainda antes de haver vacinas, quando alguns autores (e países como Reino Unido ou Suécia) defenderam que lá se chegasse pela infeção natural – isto antes da escala de hospitalizações, mortes e críticas refrear as expectativas. A ideia é que há um momento em que a imunidade na população funciona de barreira aos vírus: se um infetado está num círculo e quase toda a gente à volta já tiver defesas, e assim sucessivamente, as cadeias de transmissão não vão longe.
Se esta é a ideia, a percentagem de pessoas que precisa de ser infetada/vacinada para ser conseguido este “muro” pode ser calculada a partir do R0 do vírus, a sua capacidade de transmissão sem medidas de mitigação, mas também deve ter em conta diferenças populacionais, sazonalidade, entre outros fatores, pelo que a meta de 60% a 70% é algo simplificada. Numas regiões pode ser maior que outra ou no inverno maior que no verão mas a base da fórmula é 1 − (1/R), sendo o R a taxa de propagação do vírus quando toda a gente é susceptível, o que em Portugal foi estimado pelo INSA no início da pandemia em 2,02 (cada infetado contagiava em média duas pessoas), havendo algumas estimativas superiores. Por exemplo o R0 da gripe sazonal é estimado em 1,28. Com as novas variantes do SARS-CoV-2, mais transmissíveis (podem aumentar o R em 0,40), alguns autores têm defendido que poderá ser preciso uma percentagem superior de população protegida para se atingir a imunidade de grupo, acima de 80%.
Pedro Simas, investigador do Instituto de Medicina Molecular, explica que o conceito de imunidade de grupo varia com os próprios vírus e acredita que neste caso importa sobretudo ter presente que não se vai neutralizar o vírus como acontece no sarampo, defende. O vírus do sarampo é dos mais contagiosos, com um R0 de 12 a 17, estimando-se que seja preciso manter uma cobertura vacinal acima de 95% para haver imunidade de grupo, recorda. Mas isto funciona, explica Simas, pela característica biológica do vírus: “Apesar de o sarampo ser um vírus respiratório, tem uma fase virémica, em que se espalha pelo sangue e há uma infeção sistémica. Quando fazemos uma resposta imunológica, temos uma imunidade de longa duração. Isto porque somos muito bons a fazer anticorpos no sangue”.
Acontece o mesmo o vírus da papeira, rubéola, hepatite B e todas as vacinas que são dadas para estes vírus permitem, com coberturas elevadas, pensar em erradicar os vírus (o que até aqui só aconteceu com a varíola). A gripe, que será mais parecido com o do coronavírus neste caso, é uma infeção respiratória mas não tem fase virémica, continua o investigador. “É uma infeção das vias respiratórias e do pulmão, mas é uma infeção superficial, só em casos raros é que tem fase virémica, pelo que a imunidade é menor. O que significa que a imunidade populacional não protege contra a infeção, protege contra a disseminação pandémica do vírus. No sarampo, para a infeção. Na gripe, continua a haver ao longo de todo o ano e com epidemias sazonais, mas a transmissão não é tão elevada como quando temos um vírus novo, como aconteceu na pandemia de gripe. Por cima disto, como não se consegue parar a transmissão, as vacinas da gripe protegem contra doença severa, hospitalização e morte e não a 100%. Os coronavírus são diferentes dos vírus da gripe nas outras coisas, mas são iguais nisto: quando atingirmos os 60% a 70%, vamos passar de pandemia a endemia e continuaremos a precisar de vacinas para prevenir hospitalizações”.
E isso pode acontecer a 14 de julho? Aqui entram outras contas. Para responder, seria preciso perceber que percentagem da população já foi infetada e tem imunidade por via da infeção natural e que percentagem já foi vacinada nessa altura.
Para a primeira pergunta não há uma resposta clara: em Portugal já houve 817 mil pessoas diagnosticadas com covid-19. É ainda esperado um novo inquérito serológico, que estava anunciado para o mês passado e que estimará que percentagem da população tem anticorpos a partir de uma amostra representativa. Tendo em conta que há casos assintomáticos que nunca foram detetados, e no primeiro inquérito serológico feito em julho do ano passado eram seis vezes mais do que os casos diagnosticados, Pedro Simas acredita que 20% a 30% da população portuguesa possa já ter sido exposta ao vírus e ter algumas defesas. Depois, sabe-se que 10,2% já tem pelo menos uma dose da vacina. Alguns que fizeram a vacina podem ter estado vacinados sem saber, pelo que a esta altura a percentagem de pessoas com defesas andará pelos 30% a 40%.
De uma forma ou outra, quando se ouve falar do objetivo de vacinar 70% da população, que Thierry Breton aponta agora para 14 de julho, é ainda preciso vacinar milhões de pessoas. Um ponto que alguns autores levantam é que mesmo 70% da população adulta vacinada não significa 70% da população vacinada – e até aqui as vacinas não estão a ser dada a crianças e jovens com menos de 18 anos. Foi o caso de Christopher Murray, diretor do Instituto para Avaliação e Métricas de Saúde da Universidade de Washington, que escreveu um artigo no início do mês a alertar que é improvável que se atinja a imunidade de grupo e que o vírus continuará a circular. Em Portugal, segundo as estimativas do INE, 16,5% da população portuguesa tem menos de 18 anos, pelo que quando 70% dos adultos estiverem vacinados, serão seis milhões de portugueses com a vacina, 58% da população garantidamente com defesas.
Se nos EUA 30% da população já tem pelo menos a primeira toma, o comissão europeu propôs-se atingir a mesma meta dez dias depois com apenas 10% dos europeus com a primeira dose da vacina feita. Até esta segunda-feira, segundo os dados disponibilizados pelo ECDC, foram distribuídas pelos estados membros 64 milhões de doses de vacinas e administrados 55 milhões. Com os 300 a 350 milhões de doses anunciados por Thierry Breton até julho, significaria mais de 400 milhões de doses nos diferentes países. A UE tem 447 milhões de habitantes, pelo que se for a contar com duas tomas, na altura pouco mais de 50% terá feito a vacina completa. Se for uma toma apenas, pode ser atingível. Já no continente europeu vivem 746 milhões de euros e aí dificilmente a previsão do comissário europeu, como foi anunciada, corresponderá à realidade quando chegar o dia da Bastilha.
Menos de metade das vacinas usadas nos grupos de maior risco Em Portugal o compromisso da task-force de vacinação, reforçado na semana passada ao i, é concluir a primeira fase da vacinação em meados de abril e iniciar então a segunda fase de vacinação, que abrange idosos com mais de 65 anos e mais doentes de risco. O objetivo de atingir a 70% da população (adulta) foi remetido para agosto. E a task-force esclareceu ao i que quando é traçado esse objetivo, não significa que na altura 70% da população já tenha as duas doses, o que só deverá acontecer mais tarde. Para Pedro Simas, uma dose é suficiente e defende o foco deveria ser garanti-lo o mais rapidamente a todos os grupos de risco. “Em Portugal pouco mais de 40% das vacinas foram usadas dos 65 anos para cima quando poderiam prevenir 90% das mortes. Preferia ter visto um plano de vacinação baseado nas idades, já teríamos grande parte do problema resolvido. A meta do 14 de julho, mesmo que seja atingida, para mim é irrelevante”, continua o investigador. “Neste momento não acho que a imunidade seja uma prioridade, a prioridade deve ser a vacinação dos grupos de risco, porque isso diminui internamentos e mortes. A única coisa que a imunidade de grupo vai fazer é permitir que vírus circule menos, mas vai continuar a circular. O que é importante é não adulterar o plano de vacinação com a incorporação de populações que não são de risco mas grupos profissionais como professores, decisões que são políticas e não têm um racional científico. Temos é de salvar vidas”, diz o investigador.