MÃE! Como te chamo?


Águeda, minha terra infirma, que fica presa entre o ir e o voltar. Regressar é um destino que não falho, trazendo sempre no peito a esperança de reencontrar a voz da minha mãe que me chama da janela da infância. A minha mãe faz anos hoje, outra vez confinada, como em março passado, sem os…


Águeda, minha terra infirma, que fica presa entre o ir e o voltar. Regressar é um destino que não falho, trazendo sempre no peito a esperança de reencontrar a voz da minha mãe que me chama da janela da infância. A minha mãe faz anos hoje, outra vez confinada, como em março passado, sem os netos que a mimem. A doença cravou no meio de nós todos o ferro da solidão. Sonhamos, como a Maria Bethânia, o sonho impossível de vencer o inimigo invencível enquanto sofremos a tortura implacável de romper a incabível prisão e de voar num limite improvável tocando o inacessível chão. A minha mãe faz anos; e eu, como lhe chamo? Dizem por aí que a palavra mãe tem de ser apagada dos dicionários. Mas como apagar dos dicionários a palavra onde tudo começa? “Para alguém sou o lírio entre os abrolhos/E tenho as formas ideais de Cristo/Para alguém sou a vida e a luz dos olhos/E, se na Terra existe, é porque existo”, escreveu Gonçalves Crespo. Para a mãe. Os puristas da assexualidade trepam já pelas paredes da língua portuguesa, trazendo nas mãos os estandartes de um novo fascismo, mais sinistro, mais insidioso, quase invisível. Por eles, não haverá mais, no plaino abandonado que a morna brisa aquece, uma prece vinda de longe: “Que volte cedo e bem!” O império já não tece as malhas em redor do menino de sua mãe que jaz morto e apodrece. Quem espera por ele? A inexistência de uma palavra proibida? Quem abre as asas sobre o meu leito? Quem faz o meu sono deslizar perfumado quando estou melancólico, triste e fatigado? MÃE! Assim, em maiúsculas e com ponto de exclamação. No momento de te abraçar, como te chamo? Pior ainda: no momento de te abraçar como me chamo, se não existo sem ti? Brotará uma flor do chão impossível e ela terá a doçura dos teus olhos claros, transparentes. Por mais que milícias infames fuzilem as palavras. Não sabem, os ignorantes implacáveis que mãe não é palavra. Mãe é plural e somos nós!

MÃE! Como te chamo?


Águeda, minha terra infirma, que fica presa entre o ir e o voltar. Regressar é um destino que não falho, trazendo sempre no peito a esperança de reencontrar a voz da minha mãe que me chama da janela da infância. A minha mãe faz anos hoje, outra vez confinada, como em março passado, sem os…


Águeda, minha terra infirma, que fica presa entre o ir e o voltar. Regressar é um destino que não falho, trazendo sempre no peito a esperança de reencontrar a voz da minha mãe que me chama da janela da infância. A minha mãe faz anos hoje, outra vez confinada, como em março passado, sem os netos que a mimem. A doença cravou no meio de nós todos o ferro da solidão. Sonhamos, como a Maria Bethânia, o sonho impossível de vencer o inimigo invencível enquanto sofremos a tortura implacável de romper a incabível prisão e de voar num limite improvável tocando o inacessível chão. A minha mãe faz anos; e eu, como lhe chamo? Dizem por aí que a palavra mãe tem de ser apagada dos dicionários. Mas como apagar dos dicionários a palavra onde tudo começa? “Para alguém sou o lírio entre os abrolhos/E tenho as formas ideais de Cristo/Para alguém sou a vida e a luz dos olhos/E, se na Terra existe, é porque existo”, escreveu Gonçalves Crespo. Para a mãe. Os puristas da assexualidade trepam já pelas paredes da língua portuguesa, trazendo nas mãos os estandartes de um novo fascismo, mais sinistro, mais insidioso, quase invisível. Por eles, não haverá mais, no plaino abandonado que a morna brisa aquece, uma prece vinda de longe: “Que volte cedo e bem!” O império já não tece as malhas em redor do menino de sua mãe que jaz morto e apodrece. Quem espera por ele? A inexistência de uma palavra proibida? Quem abre as asas sobre o meu leito? Quem faz o meu sono deslizar perfumado quando estou melancólico, triste e fatigado? MÃE! Assim, em maiúsculas e com ponto de exclamação. No momento de te abraçar, como te chamo? Pior ainda: no momento de te abraçar como me chamo, se não existo sem ti? Brotará uma flor do chão impossível e ela terá a doçura dos teus olhos claros, transparentes. Por mais que milícias infames fuzilem as palavras. Não sabem, os ignorantes implacáveis que mãe não é palavra. Mãe é plural e somos nós!