Com um enorme sentido de previsão, a Transparency International publicou, em Março de 2019, um relatório sobre a corrupção no sector da saúde a nível mundial, que intitulou “The ignored pandemic” (“A pandemia ignorada”), acessível em http://ti-health.org/wp-content/uploads/2019/03/IgnoredPandemic-WEB-v3.pdf. Esse relatório demonstra como a corrupção no sector da saúde ameaça a cobertura universal dos cuidados de saúde, estimando uma perda de 500 mil milhões de dólares por ano, a nível mundial, em resultado dessa corrupção.
No referido relatório são identificados seis tipos de corrupção no sector de saúde: absentismo; pagamentos informais pelos pacientes; furto e peculato; prestação indevida de serviços; favoritismo; e manipulação de dados. Nesta crónica iremos examinar especificamente os casos de furto e peculato e de favoritismo, em face das denúncias públicas de casos de vacinação indevida no nosso país.
Relativamente aos casos de furto e peculato, o relatório refere ser prática comum em muitos países a apropriação indevida de vacinas e medicamentos. Um estudo de 1999 relativo ao Uganda revelou desvios de medicamentos da ordem dos 76% – em dez hospitais, só um veio a receber acima de 50% dos medicamentos necessários para tratar os seus pacientes. Outro estudo de 2011 relativo ao Togo revelou que um terço dos medicamentos antimalária, no valor de um milhão de dólares, foi desviado. Está por outro lado demonstrado que estes desvios contribuem de forma significativa para a escassez dos medicamentos. Num estudo de 2006 relativo à Costa Rica, um país com baixo nível de corrupção, foi demonstrado que metade dos pacientes não receberam o medicamento que deveriam devido à falta de disponibilidade do mesmo, em virtude do desvio para terceiros.
Outra situação muito criticada no relatório é o favoritismo, consistente na atribuição de tratamento preferencial a pacientes, em virtude das suas conexões sociais, que muitas vezes é dissimulado pelas estruturas formais. Um exemplo desta situação ocorreu recentemente com o ministro da Saúde da Argentina, Ginés González García, que se demitiu do cargo quando se percebeu que tinha criado uma “lista de vacinas VIP”, reservando 3 mil doses da vacina russa Sputnik v para personalidades politicamente próximas. O relatório salienta que, mesmo que não haja pagamentos em virtude desse tratamento preferencial, a existência de expectativas explícitas ou implícitas de uma reciprocidade futura transforma este fenómeno numa forma de corrupção.
Em Portugal, infelizmente, apesar de o Ministério Público já ter anunciado a abertura de 33 inquéritos criminais aos casos de vacinação indevida, continuam todos os dias a surgir mais notícias de casos semelhantes, aos quais não se tem reagido da forma que a gravidade destes comportamentos justifica. Há que não esquecer que a vacinação de um grupo de pessoas, num quadro de escassez de vacinas, é um jogo de soma zero, em que aqueles que recebem indevidamente a vacina privam outros de a receberem quando dela estariam muito mais carenciados. Por outro lado, a vacinação indevida atinge profundamente os princípios de uma sociedade democrática, em que ninguém pode ser privilegiado em virtude da sua condição social, e muito menos quando esse privilégio pode danificar profundamente aqueles em pior situação.
Numa altura em que manifestamente não estamos a receber as vacinas de acordo com o ritmo de entrega previsto, e em que, portanto, continuamos a ter uma enorme escassez de vacinas, é absolutamente imperioso que seja garantido a todos os cidadãos que não haverá casos de vacinação indevida e que os que eventualmente se tenham verificado serão severamente punidos. Estamos perante situações que minam a confiança dos cidadãos no Estado de direito, que por isso tem de ser rapidamente restaurada.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990