A Música do Acaso (um ano depois de um vírus ou de outra coisa qualquer)


Planeamos, organizamos, pensamos, decidimos, e depois, bruscamente, o imprevisto, e tudo muda.


Tomo para este texto o título de Paul Auster, mas não para escrever (pelo menos diretamente) sobre aquele que dizem ser o principal tema do seu livro: a liberdade. Não é dela que me ocuparei, até porque são tantos os significados possíveis para tal significante que mil textos não chegariam. E, além disso, acho-me a cada dia mais ignorante acerca do sentido de monólogo que, hoje, muitos parecem querer emprestar-lhe; eu só a entendo como diálogo.

É sobre o acaso que escrevo. E não é por acaso que é agora. É agora, quando faz um ano (mais ou menos) que o inesperado entrou nas nossas vidas e que – dizem – virou tudo de pernas para o ar. Há um ano – perguntam, ainda que retoricamente –, alguém imaginava que agora estaríamos assim? As voltas que a vida dá – também se diz. Um dia, um mar de caminhos, no outro, zás, a lâmina afiada do acaso. Planeamos, organizamos, pensamos, decidimos, e depois, bruscamente, o imprevisto, e tudo muda. Donde – dizem – tudo é precário, tudo é incerto, e não valerá realmente a pena planear, organizar, pensar, decidir. Deixemo-nos, portanto, ir – dizem.

Tendo a discordar. Não que discorde da existência do acaso, que é uma evidência (exceto para os que acham que nada é por acaso, o que não é o meu caso). E também não discordo do acaso ele mesmo (e como poderia?), embora me arrelie com ele frequentemente, mas não me gasto a discordar com o inevitável, e até lhe reconheço virtudes. Duas, principalmente, e é exatamente por as ter que disse que tendo a discordar. E de quê? Pois bem, por um lado, da afirmação de que a existência do acaso faz com que planear não mereça a pena; e, por outro lado, da ideia de que o acaso muda tudo.

Se, por acaso, o acaso vem, é bom que tenhamos planeado, organizado e pensado. Precisamente por causa dele, porque o esperado, o certo, o previsto não carecem de muito planeamento. Não precisamos assim tanto de estar preparados para o que se mostra, mas sim para o que se não mostra, para o que se esconde, o que se furta – e nos furta. Como, aliás, hoje se vê bem, um ano depois da emergência estridente do acaso. Quem melhor estava, menos mal fica. Quem menos bem estava, pior fica. É precisamente porque há acaso que vale muito a pena organizar, pensar e decidir. Para não sermos conduzidos por ele, mas para nos conduzirmos nele; e isso faz toda a diferença.

Até porque – e essa é a minha segunda discordância – ele não muda tudo, mesmo quando vira as coisas do avesso. Muda à superfície, mexe, perturba, desafia, destrói; mas não nos muda na essência, “apenas” (e isso é muito) nos confronta, nos expõe, nos desnuda, seja enquanto indivíduos, seja enquanto sociedade. E mostra-nos que antes e durante o acaso somos, essencialmente, os mesmos. O acaso não é a causa das nossas forças ou fraquezas, nem das nossas suficiências ou insuficiências. É apenas – como são todos os testes – a prova delas. O acaso não é a desgraça. Desgraça é não estar à espera da sua inevitabilidade e viver como se, por acaso, fosse possível viver sem o acaso. E desgraça é, também, nada aprender com cada acaso, pois realmente a vida disso é feita, e nós nela.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira

A Música do Acaso (um ano depois de um vírus ou de outra coisa qualquer)


Planeamos, organizamos, pensamos, decidimos, e depois, bruscamente, o imprevisto, e tudo muda.


Tomo para este texto o título de Paul Auster, mas não para escrever (pelo menos diretamente) sobre aquele que dizem ser o principal tema do seu livro: a liberdade. Não é dela que me ocuparei, até porque são tantos os significados possíveis para tal significante que mil textos não chegariam. E, além disso, acho-me a cada dia mais ignorante acerca do sentido de monólogo que, hoje, muitos parecem querer emprestar-lhe; eu só a entendo como diálogo.

É sobre o acaso que escrevo. E não é por acaso que é agora. É agora, quando faz um ano (mais ou menos) que o inesperado entrou nas nossas vidas e que – dizem – virou tudo de pernas para o ar. Há um ano – perguntam, ainda que retoricamente –, alguém imaginava que agora estaríamos assim? As voltas que a vida dá – também se diz. Um dia, um mar de caminhos, no outro, zás, a lâmina afiada do acaso. Planeamos, organizamos, pensamos, decidimos, e depois, bruscamente, o imprevisto, e tudo muda. Donde – dizem – tudo é precário, tudo é incerto, e não valerá realmente a pena planear, organizar, pensar, decidir. Deixemo-nos, portanto, ir – dizem.

Tendo a discordar. Não que discorde da existência do acaso, que é uma evidência (exceto para os que acham que nada é por acaso, o que não é o meu caso). E também não discordo do acaso ele mesmo (e como poderia?), embora me arrelie com ele frequentemente, mas não me gasto a discordar com o inevitável, e até lhe reconheço virtudes. Duas, principalmente, e é exatamente por as ter que disse que tendo a discordar. E de quê? Pois bem, por um lado, da afirmação de que a existência do acaso faz com que planear não mereça a pena; e, por outro lado, da ideia de que o acaso muda tudo.

Se, por acaso, o acaso vem, é bom que tenhamos planeado, organizado e pensado. Precisamente por causa dele, porque o esperado, o certo, o previsto não carecem de muito planeamento. Não precisamos assim tanto de estar preparados para o que se mostra, mas sim para o que se não mostra, para o que se esconde, o que se furta – e nos furta. Como, aliás, hoje se vê bem, um ano depois da emergência estridente do acaso. Quem melhor estava, menos mal fica. Quem menos bem estava, pior fica. É precisamente porque há acaso que vale muito a pena organizar, pensar e decidir. Para não sermos conduzidos por ele, mas para nos conduzirmos nele; e isso faz toda a diferença.

Até porque – e essa é a minha segunda discordância – ele não muda tudo, mesmo quando vira as coisas do avesso. Muda à superfície, mexe, perturba, desafia, destrói; mas não nos muda na essência, “apenas” (e isso é muito) nos confronta, nos expõe, nos desnuda, seja enquanto indivíduos, seja enquanto sociedade. E mostra-nos que antes e durante o acaso somos, essencialmente, os mesmos. O acaso não é a causa das nossas forças ou fraquezas, nem das nossas suficiências ou insuficiências. É apenas – como são todos os testes – a prova delas. O acaso não é a desgraça. Desgraça é não estar à espera da sua inevitabilidade e viver como se, por acaso, fosse possível viver sem o acaso. E desgraça é, também, nada aprender com cada acaso, pois realmente a vida disso é feita, e nós nela.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira