Uma luz rasgou as nuvens e passámos, de novo, a ver o mundo a cores. Talvez esta luz, repentina, surpreendente, afaste por momentos o medo que tomou conta das pessoas, que vagueiam como fantasmas, distantes umas das outras, tão distantes agora que deixei de ouvir as conversas da esplanada do café da Rua Rui Salema onde, geralmente ao fim da tarde, vinham homens do trabalho beber cervejas pelos gargalos das garrafas.
A janela do meu quarto dá para o café e acordo sempre cedo, com o arrastar das cadeiras, antes de voltar a adormecer outra vez, respeitando o meu horário de ave noturna que só sabe poisar quando a madrugada vai longa. Lembro-me do tempo em que a minha imaginação fazia barcos de papel com as mentiras que me contavas. Fingia-me crédulo porque gostava de te ouvir falar, pouco importavam as palavras.
Neste cárcere de fevereiro, quanto valem as palavras? E se fizesse um risco na parede para cada dia que passa da tortura da prisão de simplesmente não estar? A luz veio, mas não leva consigo a ansiedade de não saber ao certo o que fazer se não escrever, escrever sempre, escrever de manhã, de tarde, de noite, mesmo sem o som das garrafas de cerveja a tropeçarem no eco dos gargalos. Sim, a vida em eco. Às vezes distante, às vezes mais próximo, mas em eco.
O eco não passa, afinal, de um resto de som que sobeja e teima em repetir-se como este céu que o Sado espelha. Mesmo aqui, neste terceiro andar acima do rio, estou como o Pessoa na voz do Campos: “Moro no rés-do-chão do pensamento/ E ver passar a Vida faz-me tédio”. Todos à espera que alguém anuncie finalmente que podemos deixar de ver passar a vida e vivê-la por inteiro. É o tédio, sim, é o tédio misturado com a ansiedade de combater o tédio nem que seja na ondulação ribeirinha do qwert. Não quero estar aqui. Não não estar absolutamente aqui, mas não estar preso no eco dos dias infinitos. “Não posso estar em parte alguma. A minha Pátria é onde não estou”.