Estratégias políticas em pandemia


Mesmo no pandemónio da pandemia, a estratégia política existe e condiciona muito.


1. Num excelente artigo publicado neste jornal, o ilustre jornalista Luís Marinho antevê a política portuguesa imediata da forma que sintetiza no título “Rio a prazo e Coelho à espera”. Esse é hoje um cenário que não se pode excluir se, efetivamente, o PSD tiver uma derrota nas autárquicas. Desde logo, porque as autárquicas são muitas vezes fatais para as lideranças, como se viu com o próprio Passos, com Guterres e com Balsemão.

 

2. Se for assim, há fortes hipóteses de Rio ser defenestrado e de Passos e Rangel (há agora quem junte eventualmente Marques Mendes, dado o que escreveu no DN há dias) se baterem pela liderança um contra o outro. Ganhando a corrida interna, Passos poderia tentar unificar a direita tradicional e minimizar o fenómeno Ventura. É um cenário que teria também de contar com uma amnésia coletiva dos milhões de reformados, desempregados e trabalhadores aos quais a dupla Passos/Portas cortou tudo o que podia, indo para além da troika.

 

3. O quadro descrito não tem em conta uma estratégia de sobrevivência de António Costa, que é um político fino e hábil, com perfil de matador, e não de bandarilheiro. Costa é o primeiro a saber que Passos está a espreitar para o colher.

 

4. O líder socialista também sabe que, apesar de tudo, mais facilmente derrota Rui Rio em legislativas do que Passos, uma vez que o atual líder social-democrata não se apresenta capaz de federar a direita.

 

5. Por outro lado, Costa não parece disponível para fazer três mandatos seguidos de quatro anos à frente do Governo. Se dez anos desgastaram Cavaco, imagine-se como ficaria Costa ao fim de 12.

6. O mais natural, portanto, é que se a pandemia der tréguas, se houver sinais de regresso a uma normalidade mesmo que esquisita e quando deixar de haver limitações decorrentes da presidência europeia portuguesa, António Costa procure acelerar a política e virar o calendário atual a seu favor.

 

7. Havendo condições sociais e sanitárias, Costa teria vantagem em se vitimizar, arranjar uma crise política e enfrentar Rui Rio em legislativas antecipadas, ainda que elas pudessem não ficar muito afastadas temporalmente das autárquicas.

 

8. Rui Rio, por seu lado, está desde já atento e abandonou uma relativa letargia política, dando entrevistas e multiplicando declarações, coisa que evitou durante a campanha presidencial de Marcelo, de quem não é fã desde que se desentenderam profundamente no PSD (Rio ter ido à TVI dar uma longa entrevista na hora do Sporting-Benfica é, entretanto, coisa que revela ingenuidade ou amadorismo).

 

9. Uma estratégia de antecipação eleitoral teria, obviamente, de passar por uma decisão presidencial de dissolução da Assembleia da República.

 

10. Ora, não é certo que o Presidente faça um jeito tão monumental a António Costa, permitindo-lhe ir a eleições na posição de vítima e sem uma direita clarificada, tanto no PSD como no CDS.

11. Marcelo será sempre decisivo, ou porque aceita uma antecipação eleitoral, ou porque fará tudo para manter o calendário.

 

12. Claro que, ao segurar Costa, parte da opinião pública e alguns setores políticos poderão ficar mais agastados do que já estão com o Presidente, corresponsabilizando-o pelos muitos erros de um Executivo, que, manifestamente, não é do seu espaço político-ideológico.

 

13. Até aqui tem havido uma convivência civilizada e só pontualmente tensa entre Belém e São Bento. Mas é bem provável que o chefe de Estado tenha de ser mais exigente e interventivo porque há agora uma maioria presidencial alargada, moderada e diferente da que sustenta o Governo, numa geringonça informal mas efetiva.

 

14. Se é verdade que o Governo tem tomado e exigido as medidas de confinamento à população de forma mais ou menos coerente e relativamente a tempo, seguindo o padrão dos outros países europeus, há, no entanto, muitas e sucessivas falhas graves que não se vislumbram noutras latitudes.

 

15. De facto, em muito que tem a ver com o planeamento e a aplicação de medidas técnicas e sanitárias, estamos mal. Sofremos derrotas sucessivas na luta contra uma doença que está a devastar a sociedade, matando, nomeadamente, os mais frágeis e mais pobres. É nos erros, escândalos e hesitações do plano de vacinação (para quando a demissão de Francisco Ramos, que junta sectarismo e princípio de Peter?). É na vergonha das prioridades e do passar à frente. É na interação hospitalar. É novamente na questão das máscaras. É na gestão das aulas a todos os níveis. É na falta de contratação de médicos estrangeiros, alguns dos quais residem cá e não são reconhecidos. É na gestão dos transportes suburbanos, que obviamente são perigosos. É na cegueira ideológica contra a medicina privada. É na falta de soluções para as grandes empresas como a TAP. É na incapacidade da Segurança Social para fazer chegar apoio às empresas e às pessoas. É na ocupação sistemática e sôfrega de todos os lugares públicos por gente ligada ao poder atual e aos grupos que o sustentam.

 

16. Esses erros no terreno são parcialmente tapados por uma máquina política de propaganda que repousa sobre o PS, o Bloco, o PCP/Verdes, o PAN, o Livre, e beneficia de uma comunicação social audiovisual amorfa e acrítica em termos estritamente noticiosos (a online e a impressa são mais ativas e exigentes).

 

17. Face ao referido, é natural que nos bastidores da política se desenhem estratégias, com uns à espreita, outros no terreno, mas todos à procura do poder. Desiludam-se os que porventura ainda achem que o fazem por altruísmo. Ingénuos desses já haverá poucos e serão cada vez menos. Se há gente vacinada em Portugal é contra certas formas de fazer política e utilizá-la em proveito pessoal, o que também ajuda a explicar a abstenção e, sobretudo, o alheamento dos portugueses.

 

18. Finalmente, convém que logo que haja uma pausa no estado de emergência se tente proceder à tal revisão constitucional relâmpago que permita, em determinadas e justificadas situações, adiar atos eleitorais e agilizar tomadas de decisão. Era útil que os partidos dissessem já, e claramente, se aceitam ou recusam mexer na lei fundamental, para não voltarmos ao mesmo daqui a meses, discutindo o tema novamente sem nada resolver e apenas atirando-nos areia para os olhos…

 

Escreve à quarta-feira