Como o Toyota, Ventura veio para ficar


Portugueses deram força a Marcelo e gás a Ventura, num país onde o plano de vacinação derrapa e a pandemia alastra.


1. Num dia ameno de inverno, 2 milhões e 500 mil portugueses saíram de casa num tempo de pandemia mortal e devastadora, altamente contagiosa, com um país em colapso económico, um Governo cheio de incompetências e inoperacionalidades, a fim de darem o seu voto a um Presidente que estava à partida reeleito, com mais ou menos dificuldade. É obra! Desde logo porque parte da abstenção é falsa e fruto de um sistema mal construído.

Obviamente que esta grande quantidade de eleitores moderados estavam a manifestar um desejo político de estabilidade, de confiança, mas também de exigência, a Marcelo Rebelo de Sousa, dando-lhe legitimidade reforçada para intervir na medida dos seus poderes, que não são poucos. Em Portugal, o Presidente não é uma rainha de Inglaterra. Marcelo não tem de mudar. Tem é de passar a liderar, através da palavra, de atos e de iniciativas, o combate sanitário, não hesitando em admoestar um Governo que tem vindo a cometer ultimamente erros sucessivos e graves. Domingo, pode-se ter reconhecido e agradecido o passado a Marcelo, mas certamente que se lhe solicitou mais exigência porque, realmente, o país está a afundar-se, o Governo anda à solta politicamente e à deriva tecnicamente. Este Marcelo 2.0 vai ser decisivo porque é na sua vigência que Portugal se reinventa ou se afunda definitivamente. Acontecer uma ou outra coisa vai em grande medida depender do Presidente e das pressões e orientações políticas que ele fizer. No seu discurso de vitória pareceu ter compreendido o recado dos portugueses. Veremos se foi mesmo assim ou se foram apenas palavras bonitas, mas de circunstância.

2. Com a pandemia sem sinais de acalmia e o SNS numa agravada mas habitual rutura anual, Portugal e a União Europeia estão a braços com o grave falhanço do plano de vacinação. Na UE, os laboratórios falham entregas e parece haver vacinas a serem desviadas para comercialização fora ou dentro do espaço europeu. Para agravar o caso, a indústria e a ciência da França falharam totalmente. A Sinofi e o Instituto Pasteur, que Paris glorificava, desistiram dos planos de produção e de investigação. A França é um gigante nas palavras e um pigmeu na eficácia. Por cá, não é muito diferente. O plano de vacinação muda diariamente e tinha falhas óbvias ao não contemplar os seniores com mais de 80 anos, os bombeiros, os trabalhadores da saúde do setor social e privado e ao não incluir um milhão de cidadãos que não têm médico de família (se é que os outros constam, o que é duvidoso). Francisco Ramos, o chefe operacional da vacinação, tem tido bastante trabalho, pois – como se sabe – andou a apoiar Marisa Matias e acabou de tomar posse como presidente do Hospital da Cruz Vermelha. Cumpridas essas prioridades, pode ser que agora já tenha um buraquinho na agenda para tratar desta coisa incómoda que é vacinar dez milhões de tipos que não se calam e teimam em adoecer. Quanto ao confinamento, está a acontecer o que se esperava. Há bastante gente a circular porque a vida não para e os apoios prometidos falham sistematicamente. Nas escolas prepara-se atabalhoadamente a retoma do ensino à distância. Todavia, não chegaram os tais 300 mil computadores prometidos às crianças mais desprotegidas. E agora, mesmo que cheguem, a entrega é feita em função de inscrições feitas há meses. É a completa vitória da burocracia e da demagogia barata.

3. Tal como proclamava há muitos anos um anúncio da Toyota (e que se confirmou plenamente), André Ventura veio para ficar. Ao contrário do meio milhão de votos de Ana Gomes, que não lhe pertencem e se dissiparam na segunda-feira, os eleitores de Ventura são uma realidade feita de gente que não é, evidentemente, de extrema-direita ou fascista. Os “venturistas” são descontentes de todas as classes, mas são sobretudo os esquecidos, os sem voz e os que se sentem injustiçados por terem sempre de pagar a troco de nada. Foi para eles que Ventura falou sistematicamente, mesmo quando radicalizou o discurso. Sendo certo que, para o Chega, as próximas eleições autárquicas são o ponto mais difícil de uma caminhada de afirmação política, o partido e o líder terão de montar uma estratégia para minorar danos eventuais. O seu verdadeiro desafio é manter-se à tona até às legislativas. Há quem pense que Ventura teve agora o seu zénite político. Não é certo. Os tempos que se avizinham não prometem melhorias sociais e progresso. Pelo contrário. Há, portanto, tendencialmente mais razões para Ventura crescer do que para perder votos, sobretudo se na direita moderada e no espaço do PPD/PSD não houver um projeto federador, mobilizador e apelativo. As sondagens de terça-feira eram boas para o Chega e globalmente más para a não esquerda. Ventura tem, mesmo assim, um caminho pela frente que pode levá-lo longe se não deixar que o Chega seja consumido por guerras intestinas. Não há nada mais fragmentado na política do que a direita, que tem uma quantidade enorme de movimentos e tipos de afirmação. Para já, no entanto, Ventura vai continuar na pantalha, pondo o lugar à disposição, tratando da sua reeleição e beneficiando dos holofotes mediáticos hostis que lhe têm servido de trampolim.

4. Primeira Pessoa é um programa de qualidade, intimista e inteligente, apresentado e conduzido por Fátima Campos Ferreira, na RTP. Os entrevistados são bem escolhidos e têm verdadeira dimensão nacional e até internacional. Fátima Campos Ferreira confirma ali ser um valor seguro do jornalismo de televisão, que em Portugal anda um bocado por baixo, caindo no facilitismo, na investigação de encomenda e na catadupa de comentadores impreparados. Claro que ninguém esquece o Prós e Contras e nada há ainda que o substitua. O novo projeto manteve a presença da jornalista no ecrã. É sempre bom ver e ouvir profissionais de qualidade. É o caso também de Flor Pedroso e Rui Pêgo na rádio pública, registando-se, noutras ondas, uma ascensão permanente da Rádio Observador – talvez ainda não em ouvintes, mas certamente em influência. Na Renascença, cujas audiências se ressentem da chegada do projeto Observador, houve mudanças. Graça Franco já não é diretora de informação e as televisões ganharam uma comentadora inteligente e assertiva.

 

Escreve à quarta-feira