Um mês depois da formalização do Brexit será já verosímil que, a coberto do reconfinamento, alguém tenha terminado a leitura das 1259 páginas do acordo entre a União Europeia e o Reino Unido, na versão da corrigenda de 27 de Dezembro.
O texto do divórcio é sumamente interessante, desde logo porque foi o primeiro a acontecer na UE. A possibilidade de recesso não estava expressamente prevista antes do Tratado de Lisboa e foi a rogo de Londres que o artigo 50.o passou a constar do contrato matrimonial (as profecias auto-realizáveis são um tropismo anglo-saxónico…). Como em todos os divórcios, o balanço da vida em comum é curto. Por junto, os agora desquitados dedicam-lhe o primeiro considerando da fórmula preambular, a título de renovação dos votos para uma vida futura e em separado: compromisso para com a democracia, o Estado de direito, os direitos humanos, o combate à proliferação de armas de destruição massiva e às alterações climáticas. É pouco e não tem a grandeza literária dos preâmbulos de muitos textos constitucionais ou sequer a ambição e capacidade de síntese de outras convenções internacionais. Conhecidas as dificuldades da negociação e o desconforto físico das salas em que decorreu, no horror do Borschette, em Bruxelas, e numa cave ministerial em Londres, compreende-se a pouca inspiração do verbo diplomático.
De um divórcio espera-se que devolva a liberdade às partes. No caso, a liberdade passa pelo abandono do direito da UE e dos respectivos mecanismos de produção e interpretação (leia-se Tribunal de Justiça). Os negociadores britânicos garantiram logo no artigo 4.o, certamente com gosto, a interpretação do “acordo comercial e de cooperação” à luz do direito internacional público, das suas normas costumeiras em matéria de interpretação de convenções internacionais, desde logo as codificadas na Convenção de Viena de 1969, e afastaram expressamente as normas e os mecanismos interpretativos do direito de qualquer uma das partes (leia-se do execrado direito da UE).
Não obstante este piedoso anúncio, o acordo tenta fazer aquilo que Pascal Lamy identificou como sendo a tarefa impossível prometida pelo Brexit: retirar os ovos da omelete. Foi criada uma cornucópia de mecanismos institucionais para a aplicação do acordo, encabeçados por um Conselho da Parceria e uma pletora de comités sectoriais, cavalgando muitos mais grupos de trabalho, com poderes para interpretar, integrar e modificar o acordo. Sendo o Conselho paritário, a possibilidade de Londres e Bruxelas não se entenderem reconduzirá a solução dos litígios à arbitragem internacional. As decisões do tribunal arbitral serão confidenciais e, caso não sejam executadas, a parte prejudicada pode, de forma proporcional, deixar de cumprir as obrigações fixadas pelo acordo.
A principal fonte de litígios está sistematizada no título xi do acordo, sob a promissora epígrafe “level playing field for open and fair competition and sustainable development”. Não obstante o anunciado divórcio, UE e RU continuarão a poder decidir o que a outra parte faz na intimidade da sua economia, na forma como subsidia determinadas actividades e como regula a vida dos seus cidadãos e empresas. É o equivalente de uma sentença decretando um divórcio em que se identificasse minuciosamente o que cada uma das partes pode ou não fazer e com quem.
Como em todos os divórcios, também no Brexit a nova vida está impregnada com os restos da anterior.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990