A pandemia, a ação do Estado, a intervenção dos media e os riscos que se avizinham


Mesmo que limitada, foi visível, durante a crise, a importância da ação do Estado na contenção dos danos maiores e na tentativa de redistribuir um pouco melhor os rendimentos disponíveis.


Quando da primeira vaga do COVID, Portugal aparecia como um país otimista e unido em torno das instituições do Estado para combater a doença.

Governo e oposição falaram, por uma vez, a uma só voz e deram, nesse particular, um exemplo no contexto europeu.

Parecia existir, por fim, um consenso sobre a importância do Serviço Nacional de Saúde e a necessidade do seu reforço, até porque as redes privadas de cuidados médicos se guardaram de intervir em termos efetivamente capazes de privilegiar o bem comum.

Os portugueses, mesmo os que foram grandemente prejudicados pelo confinamento, aceitaram, em geral, o preço que lhes foi imposto.

Porventura pela primeira vez na sua história, viram que o Estado, mesmo que com muitas hesitações e constrangimentos de vária índole, procurou acudir generalizadamente à sua sobrevivência pessoal e à manutenção do funcionamento da economia. 

A ideia do milagre português germinou, sedimentou-se e encheu de orgulho muitos portugueses que se reviam no quadro constitucional democrático vigente.

Acontece que a doença não fora vencida e se instalara, mesmo que, durante algum tempo, com aparente menor intensidade.   

Algum otimismo descabido, algum facilitismo posterior, a preponderância da política de muitos e muitos anos – sempre centrada na contenção da despesa social – e o crescente clamor dos sectores económicos pela reabertura rápida de muitas áreas de negócio, como o turismo, vieram, entretanto, a minar as bases em que assentara o sucesso inicial da luta contra a pandemia.

A continuação da doença e a sua posterior e dramática progressão começaram, pois, a exasperar alguns cidadãos mais expostos e os sectores económicos mais afetados.

Começou a ser evidente que os salários baixos dos profissionais da saúde não facilitavam o indispensável reforço pessoal do Serviço Nacional de Saúde, mesmo quando, para colmatar o desinvestimento de anos no sector, passaram a existir mais instalações e equipamentos novos para acudir aos portugueses.

Revelou-se a já antiga e desconcertante descoordenação entre os serviços de saúde e os da segurança social, provocando, como era inevitável, resultados trágicos nos lares de idosos.

Constataram-se as sabidas insuficiências do equipamento escolar para acudir, em condições de igualdade, a todos os alunos sem aulas presenciais.

Comprovou-se o envelhecimento do corpo docente do ensino público, a fragilidade de saúde de muitos dos seus professores e acentuou-se o desencorajamento geral, já proveniente do apoucamento social a que foram sucessivamente sujeitos.

Tornou-se evidente a carência de transportes públicos sanitariamente garantidos para que os trabalhadores pudessem continuar, com segurança, a laborar nas fábricas e nas empresas que não pararam.

E, no entanto, mesmo que muito limitada, foi visível, durante a crise, a importância da ação do Estado na contenção dos danos maiores e na tentativa de redistribuir um pouco melhor os rendimentos disponíveis.  

Os interesses económicos e as forças políticas que os representam – e também, desta vez, as instituições corporativas mais fortes das profissões liberais – sentiram receio dessa pequena, mas mesmo assim importante intervenção do Estado, e iniciaram a rutura com a unidade moral, política e social que inicialmente, mesmo que só em aparência, se manifestara.

Essa sua irrequietude agravou-se, ainda, com a aprovação da «bazuca» europeia e a perspetiva de que a distribuição de tais fundos não fosse, desta vez, exclusivamente direcionada aos beneficiados de sempre.

Os seus meios de comunicação social – e antenas que também têm em alguns canais públicos de televisão – enveredaram, então, por uma guerra sem quartel, em que todos os pequenos e grandes erros das instituições públicas e de quem as governa – e muitos houve, de facto – passaram a ser escrutinados e criticados sistemática e repetidamente, até à exaustão.

Exploraram demagógica e insistentemente o resultado da tomada de algumas medidas restritivas e, depois, contraditoriamente, no momento seguinte, os efeitos do seu atraso e a sua menor abrangência.

O tom sempre escandaloso e alarmista dos telejornais, o teor sempre verrinoso de muitos editoriais, as narrativas construídas sobre episódios reais e lamentáveis – mas claramente empolados – massacraram e massacram, desde há meses, os telespectadores e leitores de jornais.

Esta bem urdida campanha produziu efeitos visíveis: há muito que não se via tanto obscurantismo e uma tão grande agressividade na vida política. 

As forças que sempre contestaram a democracia sentiram-se, por fim, suficientemente fortes para se organizarem à margem dos partidos conservadores tradicionais.

O seu crescimento eleitoral empurrou, entretanto, os meios conservadores tradicionais para posições politicamente ainda mais recuadas.

Os riscos para a democracia do desenvolvimento deste processo político e social estão à vista e os resultados eleitorais e seus possíveis efeitos demonstram-nos.

Contra ele, não bastam, por acertadas que sejam, medidas avulsas.

Exige-se dos democratas a assunção de uma perspetiva clara, global, integrada e conjunta dos problemas que afetam os portugueses.

E exige-se, também, a expressão pública e galvanizadora de uma vontade política firme de levar por diante um projeto coerente e constitucionalmente apoiado.

Só um projeto refletido, seguro e categórico que vise, quanto antes, a atenuação e correção das desigualdades sociais e dos bloqueios que obstam, há muito, a um desenvolvimento económico equilibrado e mais justo do país pode, com efeito, sustar a degradação e o assalto que está a sofrer o regime democrático.

 

  

         

   

A pandemia, a ação do Estado, a intervenção dos media e os riscos que se avizinham


Mesmo que limitada, foi visível, durante a crise, a importância da ação do Estado na contenção dos danos maiores e na tentativa de redistribuir um pouco melhor os rendimentos disponíveis.


Quando da primeira vaga do COVID, Portugal aparecia como um país otimista e unido em torno das instituições do Estado para combater a doença.

Governo e oposição falaram, por uma vez, a uma só voz e deram, nesse particular, um exemplo no contexto europeu.

Parecia existir, por fim, um consenso sobre a importância do Serviço Nacional de Saúde e a necessidade do seu reforço, até porque as redes privadas de cuidados médicos se guardaram de intervir em termos efetivamente capazes de privilegiar o bem comum.

Os portugueses, mesmo os que foram grandemente prejudicados pelo confinamento, aceitaram, em geral, o preço que lhes foi imposto.

Porventura pela primeira vez na sua história, viram que o Estado, mesmo que com muitas hesitações e constrangimentos de vária índole, procurou acudir generalizadamente à sua sobrevivência pessoal e à manutenção do funcionamento da economia. 

A ideia do milagre português germinou, sedimentou-se e encheu de orgulho muitos portugueses que se reviam no quadro constitucional democrático vigente.

Acontece que a doença não fora vencida e se instalara, mesmo que, durante algum tempo, com aparente menor intensidade.   

Algum otimismo descabido, algum facilitismo posterior, a preponderância da política de muitos e muitos anos – sempre centrada na contenção da despesa social – e o crescente clamor dos sectores económicos pela reabertura rápida de muitas áreas de negócio, como o turismo, vieram, entretanto, a minar as bases em que assentara o sucesso inicial da luta contra a pandemia.

A continuação da doença e a sua posterior e dramática progressão começaram, pois, a exasperar alguns cidadãos mais expostos e os sectores económicos mais afetados.

Começou a ser evidente que os salários baixos dos profissionais da saúde não facilitavam o indispensável reforço pessoal do Serviço Nacional de Saúde, mesmo quando, para colmatar o desinvestimento de anos no sector, passaram a existir mais instalações e equipamentos novos para acudir aos portugueses.

Revelou-se a já antiga e desconcertante descoordenação entre os serviços de saúde e os da segurança social, provocando, como era inevitável, resultados trágicos nos lares de idosos.

Constataram-se as sabidas insuficiências do equipamento escolar para acudir, em condições de igualdade, a todos os alunos sem aulas presenciais.

Comprovou-se o envelhecimento do corpo docente do ensino público, a fragilidade de saúde de muitos dos seus professores e acentuou-se o desencorajamento geral, já proveniente do apoucamento social a que foram sucessivamente sujeitos.

Tornou-se evidente a carência de transportes públicos sanitariamente garantidos para que os trabalhadores pudessem continuar, com segurança, a laborar nas fábricas e nas empresas que não pararam.

E, no entanto, mesmo que muito limitada, foi visível, durante a crise, a importância da ação do Estado na contenção dos danos maiores e na tentativa de redistribuir um pouco melhor os rendimentos disponíveis.  

Os interesses económicos e as forças políticas que os representam – e também, desta vez, as instituições corporativas mais fortes das profissões liberais – sentiram receio dessa pequena, mas mesmo assim importante intervenção do Estado, e iniciaram a rutura com a unidade moral, política e social que inicialmente, mesmo que só em aparência, se manifestara.

Essa sua irrequietude agravou-se, ainda, com a aprovação da «bazuca» europeia e a perspetiva de que a distribuição de tais fundos não fosse, desta vez, exclusivamente direcionada aos beneficiados de sempre.

Os seus meios de comunicação social – e antenas que também têm em alguns canais públicos de televisão – enveredaram, então, por uma guerra sem quartel, em que todos os pequenos e grandes erros das instituições públicas e de quem as governa – e muitos houve, de facto – passaram a ser escrutinados e criticados sistemática e repetidamente, até à exaustão.

Exploraram demagógica e insistentemente o resultado da tomada de algumas medidas restritivas e, depois, contraditoriamente, no momento seguinte, os efeitos do seu atraso e a sua menor abrangência.

O tom sempre escandaloso e alarmista dos telejornais, o teor sempre verrinoso de muitos editoriais, as narrativas construídas sobre episódios reais e lamentáveis – mas claramente empolados – massacraram e massacram, desde há meses, os telespectadores e leitores de jornais.

Esta bem urdida campanha produziu efeitos visíveis: há muito que não se via tanto obscurantismo e uma tão grande agressividade na vida política. 

As forças que sempre contestaram a democracia sentiram-se, por fim, suficientemente fortes para se organizarem à margem dos partidos conservadores tradicionais.

O seu crescimento eleitoral empurrou, entretanto, os meios conservadores tradicionais para posições politicamente ainda mais recuadas.

Os riscos para a democracia do desenvolvimento deste processo político e social estão à vista e os resultados eleitorais e seus possíveis efeitos demonstram-nos.

Contra ele, não bastam, por acertadas que sejam, medidas avulsas.

Exige-se dos democratas a assunção de uma perspetiva clara, global, integrada e conjunta dos problemas que afetam os portugueses.

E exige-se, também, a expressão pública e galvanizadora de uma vontade política firme de levar por diante um projeto coerente e constitucionalmente apoiado.

Só um projeto refletido, seguro e categórico que vise, quanto antes, a atenuação e correção das desigualdades sociais e dos bloqueios que obstam, há muito, a um desenvolvimento económico equilibrado e mais justo do país pode, com efeito, sustar a degradação e o assalto que está a sofrer o regime democrático.