Trump, redes sociais e liberdade de expressão


Trump foi amordaçado nas redes sociais, mas apenas depois de perder a reeleição…


A luta entre a palavra e a acção há muito que convocou o direito. Fê-lo pela via das garantias dadas à liberdade da palavra e pela defesa, até por via da lei penal, de direitos e interesses contra as consequências da palavra. A gestão desta luta não é fácil, como o não são as ponderações a fazer entre direitos fundamentais que tutelam bens jurídicos indispensáveis à vida em sociedade. Os tradicionais conflitos entre liberdade de expressão e reserva da vida privada, protecção da intimidade, dignidade, bom nome e verdade agudizaram-se com a generalização do acesso à comunicação social. A passagem à sociedade digital tornou o conflito permanente, 24 horas por dia, não dependendo da já longínqua edição matutina ou vespertina da imprensa escrita. O advento das redes sociais alargou, pela eliminação dos profissionais da informação, o campo de batalha a todos os utilizadores, transformados em produtores de informação, com dispensa de formação profissional e de critérios editoriais. Almas inocentes identificam no mesmo totem liberdade de expressão e redes sociais.

A liberdade da palavra não é absoluta, nem sequer na versão mitológica da 1.a emenda à Constituição dos EUA. A liberdade terminaria, no entender do Supreme Court, no momento em que convida à acção, nos casos de discurso inflamatório (fighting words) que teria como consequência uma reacção violenta por parte dos destinatários, traduzindo-se numa quebra da paz social. A defesa da vida em sociedade pode conduzir à restrição da liberdade de expressão, limitando as possibilidades do discurso público. Tal acontece por decisão política ao abrigo das previsões legais para estados de excepção constitucional (a censura durante o estado de guerra), por decisão legislativa que proíba ou limite determinados discursos e por decisão judicial em situações de conflito de interesses. A suposta liberdade de expressão está cercada por todos os lados com limitações expressas (de natureza constitucional e legislativa) e implícitas (resultantes dos conflitos entre a liberdade de expressão e outros direitos).

Este cerco legislativo à liberdade de expressão tem uma enorme excepção. Que fazer com a liberdade de expressão gerida por empresas privadas que controlam o discurso no ciberespaço e que, sabiamente, reclamaram para si o estatuto de meras tubagens por onde circula a informação? Os donos das redes sociais não se assumem como produtores de informação – devolvem tal responsabilidade aos indivíduos que, ao abrigo das sacrossantas liberdades de opinião, pensamento e criação, produzem livremente conteúdos.

Nas redes sociais, a terra sem lei onde tudo se podia dizer, aconteceu o inimaginável. Os donos das “redes” censuraram uma celebridade, um famoso do Twitter, onde tinha 88 milhões de seguidores. Quase todas as redes sociais calaram aquele que, por convenção social arreigada, é o homem mais poderoso do mundo: o Presidente dos EUA.

Trump amordaçado é ainda mais perigoso: poderá passar à dark web ou aumentar ainda mais o número de utilizadores da distinta rede social Onlyfriends.

A mordaça colocada em Trump é certamente merecida, considerados os limites necessários à liberdade de expressão. O que não parece aceitável é a aplicação da dita mordaça pelos donos das redes sociais, sem recurso a um procedimento adequado e sem um enquadramento regulatório.

Pela União Europeia, a Comissão apresentou no final do ano passado a sua proposta de Digital Services Act para garantir que o que é proibido fora da net também o seja na dita. Será?

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990