João Cutileiro. Uma paixão mortal inscrita no idioma dos deuses

João Cutileiro. Uma paixão mortal inscrita no idioma dos deuses


Morreu na madrugada desta terça-feira, de complicações provocadas por um enfisema pulmonar, o escultor que refutou alegremente a autoimagem de um país que vive numa bulha entre complexos e ilusões de grandeza, fazendo-o descer à terra, e ao desejo, para deixar de tossir o pó da História e regressar à vida.


Os 83 anos de João Cutileiro deram para o gasto. Foram certamente o bastante para que a morte dele se anunciasse hoje entre as gordas nas primeiras páginas dos jornais. Com a muita pressa daqueles que procuram salvar-se à peste, por cá, 2021 não esteve com cerimónias, não gozou o período de núpcias e não perdeu tempo a inaugurar a sua galeria: mandou-se a dois grandes antes do fim da primeira semana. Carlos do Carmo, o maior e mais elegante dos galos, desses que cosiam com nasceres do sol e tanta noite esse perfil sentimental que toma o lugar da nossa razão, e, agora, quatro dias depois, o artista que tratou com a pedra umas tréguas para o país, esse que vivia (vive ainda) artificialmente a sua grandeza, uma ilusão que se impõe como negativo da realidade que vai escondendo dos outros e de si mesmo, entre a tentação maníaca e um romantismo desesperado.

Numa entrevista dada há pouco mais de uma década, naquele registo arguto, destravado que fez dele uma personagem admirável da saga que corre na contramão, enfrentando a seriedade em que nos petrificamos, João Cutileiro falava dessa condição do artista “reconhecido até pelas pessoas que não fazem a mínima ideia do que é que eu fiz, mas [que] ouvem falar”. E logo rematava: “Atingi, para o bem ou para o mal, aquilo a que vocês chamam o estatuto de ‘colunável'. Até posso definir isto de uma forma sacana, se eu morrer amanhã, venho na primeira página.” Aí está a morte dele, e aí estão as primeiras páginas para o comprovar.

Havia em João Cutileiro uma audácia de gaiato, um desembaraço, um génio arrancado ao tédio e que sabia estar-se nas tintas, enlouquecer com a pedra, estender o gesto e a técnica necessários para arrancar-lhe formas nela presas, sendo assim capaz de actos de ruptura que, contemplados no seu juízo próprio, são atravessados de um sentido de piedade serena. Assim, o seu olhar sobre a História de Portugal e os seus vultos, investia menos no registo provocador do que numa refutação encantadora, que em vez de participar no conluio com o pó e a predestinação heroica, trazia as figuras para uma proximidade maior com esses aspectos que nos agarram à vida. Mesmo que por um fio.

Naquele registo tenso necessário a quem sabe brincar, a sua intervenção causou bronca aqui e ali. Há o Dom Sebastião que se plantou em Lagos em 1973, e que se adiantou seis meses à revolução dos cravos, e aguentou uma polémica que parecia sem saída, até vir a liberdade desmanchar o prurido com aquela imagem do jovem rei transformado em fantoche adolescente. Apesar de, na altura, ter provocado celeuma, Cutileiro viu como esta acabou por ser aceite por uma nova geração de “tecnocratas, até de direita, que gostavam desse espírito ‘para a frente é que é o caminho’ em vez de nos sentarmos a proibir”. Depois, há também essa outra encomenda pública que deu origem ao Monumento ao 25 de Abril, mais conhecido como o pirilau do Cutileiro, o qual, localizado no topo do Parque Eduardo VII, na capital, permanece ali como uma obscenidade ao mesmo tempo atrevida e tocante, um gesto nu em memória das décadas de tormento e repressão a que foi sujeito um povo. E isto vale mesmo que Cutileiro tenha sempre defendido que não há ali nenhuma intenção de provocar. Contudo, sempre ia dizendo que “o 25 de Abril foi uma genial e grandiosa ejaculação”. Feito a partir de um pedestal que estava destinado a uma estátua do Santo Condestável, esta escultura encomendada por ocasião dos 25 anos da revolução portuguesa, tem na sua persistência ejaculatória mais força que a gigantesca bandeira, pois é certo que, no dia em que a liberdade seja posta em causa, como canário numa mina de carvão, será o pirilau da cidade das primeiras coisas a serem retiradas do espaço público.

Recorde-se que nos tempos de aprendiz, quando teve contacto com Leopoldo de Almeida, seu professor nas Belas Artes, e depois com António Duarte, em cujo atelier trabalhou, sentiu algo como uma indisposição face à escultura que ambos faziam, e disse que esta era feita para oprimir, ao passo que a sua, em reacção, o que mais desejava era não oprimir. Foi-se recusando às canções brônzeas, e perante o país derruído de séculos, que sempre cedeu a essas formas de contrafacção de mitos menores em bicos de pés para chegar aos maiores, a sua obra destaca-se por um ardor pessoalíssimo, por um corte com essa forma de altanaria um tanto trôpega. E, tantas vezes frustrado com os bloqueios, os impedimentos, essa mentalidade dissuasora da própria vida, e de toda a liberdade, Cutileiro identificava-se como uma espécie de artista da contradição. Assim, se reconhecia que a escultura é uma arte funerária, ele introduzia nela essa sedução da impermanência. “Verifico que a escultura, através dos milénios, tem sido usada basicamente como forma de preservar a presença humana, ao contrário da dança e da música que são artes do momento.”

Assim, porque a terra é rápida, e não lhe podemos deitar raízes tão fundas, e que resistam muito mais que a carne, restam-nos essas metamorfoses sobre as quais se põe uma pedra ou outra, fincando alguma lenda jubilante. E a escultura de João Cutileiro é atravessada por esse fôlego e, ao mesmo tempo, por uma mordaz consciência crítica, ao ponto de se ter caracterizado certa vez como “um fazedor de objectos decorativos destinados à burguesia intelectual do ocidente”. Na entrevista que deu em fevereiro de 2010 ao Correio da Manhã, clarificou esta sua afirmação, notando que “as pessoas não perceberam, e é uma pena para elas, que eu estava a definir a posição do artista hoje, e não a minha”. E logo acrescentava: “A função do artista sempre foi servir a burguesia. Antes era servir o clero, e depois passou a ser a burguesia. No Renascimento, um burguês encomendou a Paolo Ucello um retrato. É a primeira vez na história da humanidade em que há, não uma religião nem um poder de rei, mas uma fortuna a encomendar uma obra a um artista para a sua decoração pessoal.”

Quanto à urgência que abre poros na pedra como noutros materiais ou registos que vão abrindo margem, dando lugar a outra coisa ainda, essa vitalidade que se respira por toda a sua obra, explicando a sua mitologia erótica, um dia afirmou que a obra de arte está recheada de amor, e que a forma tridimensional do amor é a genital. “É muito difícil fazer uma escultura sobre amor platónico”, justificou. Mas ainda antes da descoberta que fez em Florença, numa viagem com o pai, em que se confrontou com as esculturas de Miguel Ângelo, para nunca mais desaprender esse contraste entre um ímpeto carnal que faz com que a atenção dos deuses se fixe num gesto que marca a suprema radiância das paixões mortais, começara pelo desenho.

Contudo, a pedra foi uma revelação, com as suas exigências e dificuldades, foi um último destino numa exploração que se iniciara com o lápis no papel, passando também pela fotografia, sendo a este respeito o legado de João Cutileiro bem menos conhecido. Essa obra é imensa, e funciona como uma sombra de tentativas, ensejos, uma volúpia que dança, que não se cansa do erro, da exuberância errante, buscando na forma, e sobretudo na feminina, essas pistas para a nossa interioridade. 

Mais antiga que as suas mais velhas memórias era a sensação de sempre se ter procurado no desenho. “De joelhos no chão com um lápis riscando nas costas dos manuscritos já dactilografados pelo meu pai. Continuei sempre a desenhar registando tal como um condenado vai riscando na parede os dias que faltam para o cumprimento da pena, ou o náufrago que marca o número de dias que já esteve na jangada ou ilha deserta. Tento registar, sem esforço, duma maneira linear e simples, o que me vai na cabeça.” Assim, João Cutileiro foi cúmplice de uma aventura desaustinada, aquela que o tornou próximo da fúria descomprometida dos poetas, dessa forma de libertinagem sensual e artística. E na entrevista já citada, reconhecia que “a única arte que pode não ser para vender é a poesia”. E prossegue: “O maior poeta português do séc. XX [Fernando Pessoa] nunca recebeu um tostão. Viu publicar um livro no fim da sua vida. (…) Os poemas do guardador de rebanhos [Alberto Caeiro] foram escritos num serão. Ele chegou a casa, na Abel Pereira da Fonseca, e em pé, nas costas de envelopes e em cima da sua famosa cómoda, escreveu-os. Isto não é possível na pintura, nem na escultura. Nem mesmo no romance.”

A escultura de Cutileiro, não podendo responder a um impulso imediatista, tem cravada nela essa clareza de uma inspiração que traz ainda em si esse vigor que raia o divino. E reconhecendo essa urgência, o seu amigo Alexandre O’Neill incitava-o com este breve poema: “Levanta da marreta,/ Que não há tempo para mais, João!// A carne espera, mas a pedra não…” Ao que o escultor, que, como se viu, não se dava mal nem na prosa nem nos versos, retrucou com uns de sua lavra: “Aquela curva já tem história/ A porta da glória para nós já está aberta/ Vamos à bica Alexandre/ Que a morte é certa.”