Durante muitos séculos, as relações entre os corpos celestes e o direito de propriedade serviram para alimentar a poética de muitos e alimentaram a muitos mais aquilo a que os italianos, neste caso sem poesia, denominam como “rimorchiare”.
A impossibilidade física do exercício da posse (certamente, do corpus) protegeu os corpos celestes, mesmo que a cobiça humana preenchesse abundantemente o animus possidendi.
Os progressos da tecnologia elevaram o homem aos olhos do seu semelhante e, em vários casos, levaram-no até ao espaço exterior. A iniciativa na matéria foi anterior à chegada de Margaret Thatcher a Downing Street, pelo que a conquista do espaço ocorreu por iniciativa pública, paga pelo contribuinte. Certamente por causa deste pecado original, o regime jurídico do espaço exterior foi negociado entre Estados e vertido para o Tratado sobre o Espaço Exterior, de 1967 (Tratado sobre os Princípios que Regem as Actividades dos Estados na Exploração e Utilização do Espaço Exterior, Incluindo a Lua e Outros Corpos Celestes).
Esta origem estatista não poderia ter deixado de contaminar as soluções normativas que constam do tratado. Ao arrepio do mais elementar respeito pela iniciativa privada, o artigo i determina: “A exploração e utilização do espaço exterior, incluindo a Lua e outros corpos celestes, será conduzida para benefício e interesse de todos os países, independentemente do seu grau de desenvolvimento económico ou científico, constituindo apanágio de toda a Humanidade”. O conceito de património comum da humanidade é responsável por um número elevado de úlceras gástricas no sector privado. Algumas vezes, os Estados abraçam estas dores e os EUA encontraram no regime comum dos fundos marinhos a principal razão para nunca se terem vinculado à Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar. Esta falta de fé na capacidade normativa do conceito de património comum da humanidade acabou punida pela transformação de quase todo o conteúdo da Convenção de Montego Bay em costume geral, vinculativo para todos os Estados, mesmo os que não são parte na Convenção.
Em 1967, a solução pro humanitate encontrada para a regulação do espaço exterior deveu mais à Guerra Fria do que ao altruísmo. EUA e URSS temeram um aumento do risco de conflito pelo alargamento do terreno de jogo ao espaço exterior. Considerando o colapso financeiro e tecnológico causado à economia soviética pela Guerra das Estrelas patrocinada por Reagan, Moscovo teve razão em ser prudente.
Em 1967, a tecnologia para exploração do espaço exterior era um monopólio de poucos Estados. Nenhuma empresa privada conseguiria então, sozinha e também não em coligação com outras, reunir os orçamentos e as condições físicas e tecnológicas para explorar, com lucro, o espaço exterior.
Em 2020, a realidade é outra. A tecnologia é muito mais barata, o capital privado está disponível para investir e os Estados permitem o acesso de privados a este mercado.
Como seria de esperar, a subsistência do quadro regulatório de 1967 está a ser testada. Desde logo porque as pias intenções de 1967 não deram origem a instituições eficazes na gestão do aproveitamento económico do espaço.
A 13 de Outubro deste ano foram assinados, por iniciativa dos EUA, os Acordos Ártemis, que reinterpretam o artigo ii do tratado de 1967 (“O espaço exterior, incluindo a Lua e outros corpos celestes, não poderá ser objecto de apropriação nacional por reivindicação de soberania, uso, ocupação ou qualquer outro processo”) considerando que a extracção de recursos a partir do solo e subsolo da Lua ou de asteróides não dá origem a “apropriação nacional” em violação do referido artigo ii.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990