Por entre os burocratas experimentados e testados pela vida administrativa corre um velho chiste a propósito da longevidade das organizações. Qual é a melhor forma de garantir vida eterna a um organismo público? Nomear uma comissão liquidatária. A ironia está presente no conflito de interesses entre a razão de ser da criação do novo organismo e o instinto de sobrevivência, comum aos animais e aos burocratas, que o afasta da prossecução desse objectivo.
O anúncio da morte da NATO é um tropismo com renovadas manifestações desde o fim da URSS. Curiosamente é o herdeiro espiritual do império soviético o principal responsável pela melhor saúde da organização que, segundo a própria “se ocupa da paz e da segurança”.
Para além de Putin o mais recente benfeitor da NATO foi Trump que disse, com maus modos e em frente às câmaras de televisão, aquilo que todos os presidentes americanos têm dito discreta e educadamente: os contribuintes americanos pagam a conta da defesa dos europeus. Esta verdade vai de par com uma outra evidência: quem paga manda. E não há muitas dúvidas sobre quem manda na NATO. Para além dos franceses ninguém se incomoda com esta situação, quer no segmento “mandar” mas sobretudo no segmento “pagar”.
O advento da pandemia não ajudará ao abrir da carteira dos europeus que na sua esmagadora maioria ficam aquém dos 2% de PIB alocados à defesa. Mesmo estes 2% são objecto de uma criatividade contabilística capaz de fazer ruborizar o mais cínico dos TOC. O resultado de tanta criatividade traduz-se em exércitos de papel, sentados à secretária, non deployable (isto é não é possível mandá-los para uma frente de batalha longe da messe), non sustainable (os poucos elementos que podem ser enviados não têm meios de transporte ou condições para ficarem longe das bases), nem sempre inter-operáveis e não equipados para enfrentar um teatro de guerra moderna (para já não referir os conflitos assimétricos).
Num mundo perfeito Paris gostaria de mandar e de ter Berlim a pagar. A segunda parte da equação continuará por preencher, o trauma bélico alemão é, consabidamente, grande. Já será um esforço muito significativo para Berlim pagar a recuperação da capacidade dos seus equipamentos militares que, a cavalo no peace dividend trazido pelo fim da guerra fria, chegaram a um grau anedótico de indisponibilidade. Esse esforço talvez permita lançar alguns programas multinacionais de armamento usando a capacidade industrial europeia que se encontra sub-aproveitada.
Neste cenário a NATO acaba de tornar público mais um relatório de sábios que lhe propõem um face lift até 2030. A derrota de Trump permitiu corrigir algumas das linhas de corte na cirurgia plástica proposta mas continuam à vista as rugas de expressão (divisões leste/oeste e norte/sul quanto à identificação do inimigo), um abcesso (a Turquia continua a correr em pista própria com uma política de alianças com a Rússia e um conflito aberto com a Grécia) e o excesso de pêlo (onde se esconde a Rússia, cultivando a dependência alemã do gás natural e comprando boa vontade nas capitais em que esteja à venda).
A próxima cimeira da NATO, a decorrer em Bruxelas, acolherá o Presidente Biden e mostrará, espera-se, o porquê da continuação da Aliança. O relatório dos sábios dedica duas páginas à Rússia e uma à China, descrita como “full-spectrum systemic rival” que “is acquiring infrastructure across Europe”. Esta última constatação deve ter deixado muitas orelhas vermelhas em Lisboa, Atenas, Roma, Budapeste, Nicósia e La Valetta.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990