Manuel de Freitas. Glosas sem poema

Manuel de Freitas. Glosas sem poema


769188, o novo livro de Manuel de Freitas, é um conjunto de pequenos textos em prosa, de género indefinível. Em tom menor e quase todos endereçados a alguém, joga-se num despojamento, numa exaltação do mínimo e no longo tempo do anonimato. São pequenas oferendas, palavras e gestos endereçados na “pressa lenta de um abraço”


Este novo livro de Manuel de Freitas, quase sem título – 769118, apenas –, liberta o perfume das coisas arruinadas, a sua evanescência, o seu caminho – íntimo, lento – para a morte. Há qualquer coisa neste conjunto de textos pequenos, cujo estatuto é preciso interrogar, que lembram a dada altura João Miguel Fernandes Jorge, principalmente nos encontros fugazes, nesta “luz breve que há nas coisas”, na forma como os encontros se vão delineando na sua brevidade, nesta espécie de fulgor último que as coisas e certas pessoas têm no momento em que o seu fim se aproxima (mas aqui já não é JMFJ) – o sol que desaparece, libertando uma luz ao mesmo tempo mais intensa e mais fraca.

“A luz breve que há nas coisas permite estes acasos: um exemplar de Der Mann Ohne Eigenschaften (volume 2) esquecido na mesa de cabeceira, mesmo ao lado do livro de João Barrento que motivou este regresso. Palavra imprópria, bem sei, pois é diferente a folhagem, o tom oscilante das nuvens, este corpo mais velho que se rendeu, finalmente, à prosa que os dias lhe impõem. Boa noite, pirilampos.” 

Todos estes textos, de facto, são endereçados a alguém mais do que dedicados, dizem respeito às pessoas concretas que são por ele invocadas. Rosa Maria Martelo, John Mateer, Carlos Nogueira, António Barahona, Emanuel Jorge Botelho, entre outros, comparecem, são convocados, invocados, por Manuel de Freitas. Dificilmente se pode dizer que haja aqui uma dimensão dialógica – haverá, mas a um outro nível e com outros nomes –, que estes textos estabelecem, com a obra destes poetas a quem se endereçam, uma relação mais ou menos linear, mais ou menos directa. Mas talvez se possa dizer que estes textos “lembram a sua data”, que eles são, de facto, palavra endereçada, oferendas que recordam um ou outro momento, que pretendem, em última análise, dar aquilo que não é deles, esse “perfume que teima em desaparecer” que diz respeito ao encontro, ao acontecimento que há em cada encontro: “ficou-me na mão o seu perfume, mais firme e indelével do que as palavras ou os silêncios que hoje nos aproximaram.”, diz sobre um encontro – de circunstância, ocasional, como todos os verdadeiros encontros – com António Barahona. E é como palavra endereçada, como oferenda, que estes textos se deixam ler, como se fossem essa “pressa lenta de um abraço”, esse “altar rasante” feito de ervas por dizimar – havendo aqui algo que lembra Celan, expressamente convocado na leitura que dele faz Blanchot (Le Dernier à parler) ou, talvez, implicitamente invocado na estranha formulação “vem quase sempre de onde não sabemos o que mais importa”. 

“Isto há-de parecer estúpido, sentimental ou ambas as coisas. Hoje, no vale de Santarém, reguei árvores e plantas enquanto apanhava peras e tentava dizimar as ervas que crescem à volta da casa. Só não fui capaz de arrancar as ervas que crescem debaixo da janela do quarto da minha mãe. Ela sempre as tolerou, ao contrário de mim. E talvez lhe possam servir de altar rasante, agora que não nos voltaremos a encontrar”

Todos estes pequenos textos lembram, de facto, este “altar rasante”, estas ervas que vão crescendo de forma caótica,
sem autor, sem pequena ou grande razão que os justifique. No entanto, são oferendas paradoxais, ou melhor, são oferendas que colocam dentro de si um poderoso elemento anónimo, o “despojamento”, a “exaltação do mínimo”, que Manuel de Freitas encontra em Rui Chafes – e talvez, no fim, Freitas gostaria que estes textos fossem como esses “pedacinhos de ossos”, essas “rosas bravas”, essas pequenas obras breves “que cabem numa mão aberta, inquietam-nos e deslumbram-nos para logo a seguir se despedirem”.

Seguindo uma lei íntima do encontro – esta que nos diz que “tudo, enfim, pode demorar muito tempo a revelar-se ou a extinguir-se”, como se neste houvesse sempre um desencontro, um contratempo – Manuel de Freitas aponta ao centro anónimo da história, a essas outras oferendas às quais teremos que responder, feitas por mãos anónimas; como se a língua ou o ferro da escultura fossem modeladas ao longo dos tempos, estas chegam-nos de um tempo que não é o nosso. 

“Este texto não existiria se eu não tivesse visto ontem, no claustro da Sé de Lisboa, uma grade romântica do século XIII. Há oito séculos que estes pássaros não cantam, que estas cobras não deslizam pela relva húmida, que estas osgas não sobem paredes esboroadas. Ninguém sabe, aliás, que mãos lhes deram forma, que nome atribuir à beleza leve e robusta desta grade. Sabemos apenas, como diria Rui Chafes, que ali o ferro se fez vento – e que o vento chegou até nós, incólume e cantante. Estes pássaros, estas cobras, estão muito mais vivos do que nós, indiferentes a modas, balanços e ao Juízo Final. Não têm tempo, porque são o próprio tempo, traduzido em ferro por mãos feitas de nada e de ossos breves”

São oferendas, portanto, mas acabam por reclamar essa indiferença ao tempo, o anonimato desses pássaros feitos por mãos, “ossos breves”, “feitas de nada”, que há muito desapareceram.

Tudo isto, a oferenda, a palavra endereçada, o anonimato, o tempo longo, sem pequena ou grande razão, que vai tecendo a língua – e nunca se sabe o que ficará e o que será condenado ao desaparecimento –, esta língua, por sua vez, feita de tempos diferentes sem continuidade por seres anónimos que há muito desapareceram, tudo isto, dizia, é já conhecido. Anda por aí, digamos assim, trabalhado de forma pior ou melhor, com maior ou menor interesse e pregnância – e Manuel de Freitas maneja tudo isto como poucos, é o seu corpo, a sua voz.

Aquilo que mais me interessa, no entanto, é o estatuto discursivo destes pequenos textos, que não são prosa poética, nem poesia, nem propriamente prosa, se isso existir. Em primeiro lugar, porque há, aqui e ali, uma acusação a uma (certa) poesia – “Mesmo que rime, é verdade” – que, por sua vez se dobra face a esta poesia, a poesia de Manuel de Freitas – da qual é dita que redunda, de facto, num “longo corredor vazio”. Se ignorarmos por um momento um outro problema (que diz respeito aos momentos mais autobiográficos, como se a afirmação de que “deixei de desejar quase tudo. Despeço-me dos livros e discos sem o mínimo constrangimento. O que escrevo ou deixo de escrever não me preocupa muito” não fizesse parte de uma tradição poética), o que encontramos é uma espécie de impossibilidade. Há, aliás, um momento, num destes textos, onde isso se torna claro:

“Estás a ficar crescido: era tão fácil, hoje, cederes a um poema, enquanto a cerveja mais lenta do mundo te separava do Natal. Até já ouvias os primeiros versos, a assobiarem por entre as árvores iluminadas do jardim de Santo Amaro. (…)
Mas havia demasiado frio – entre ti e a cerveja, ou entre ti e o mundo. Pouco importa. Um táxi levou-nos depois a casa, atravessando ruas desertas. Mas não foi a casa que regressaste, antes a heróis antigos: Bill Evans, Corto Maltese, Tom Waits. Ainda assim, preferias não roubar o colo à Daisy com estas palavras inúteis. 
Porque os sinos, esses, deixaram mesmo de tocar”

Ironia ou não, “estás crescido” é também ele uma acusação ao poema – que é, desta forma, uma criancice, um jogo inocente, talvez indecente, provavelmente inútil. E parece-me bastante interessante esta imagem de um poeta que ouve já os primeiros versos “a assobiarem por entre as árvores iluminadas”, mas que, mesmo assim, não cede, não escreve – não cede ao poema, a um certo poema, a uma certa poesia? 

Há aqui um desfasamento, um corte, que Manuel de Freitas diz que se instituiu entre ele, o poeta, e o mundo, que faz com que ele abandone a poesia sem que ela o abandone – há esses versos que ainda ouve, há este diálogo, intenso, com vários poetas. Mas o que pode significar, para um poeta, abandonar a poesia sem que esta o abandone? A poesia provençal tinha um termo que me parece interessante: razo. Sobre esta, escrevia Agamben:

“Quando a poesia era uma prática responsável, pressupunha-se que o poeta estaria sempre em condições de justificar o que havia escrito. Os provençais chamavam razo à exposição desta fonte escondida do canto, e Dante intimava o poeta, sob pena de cair em vergonha, a saber «abri-la em prosa”.

Estes pequenos textos de Manuel de Freitas parecem-me, em última análise, uma declinação, paradoxal sem dúvida, desta intimação de Dante, desta abertura em prosa que este exigia do poeta. O problema, claro, é que o poema é doravante impossível e Manuel de Freitas encontra a razo, a “fonte escondida do poema”, vazia, e o poeta que abandonou a poesia pode apenas sentir-se acossado, tentado por ela. São glosas sem poema algum.