“O meu nome é Nuno, vivo numa pequena cidade chamada Pombal, e vou contar uma história de um rapaz que se fez homem a ver filmes. Vim de África com a minha família quando tinha quase 2 anos, tinha dois irmãos gémeos mais velhos, uma irmã mais nova, o meu pai era professor e Pombal, esta pequena cidade em Portugal, foi o sítio que escolheram para começar uma nova vida. As minhas primeiras memórias não são desta cidade onde vivo, são das férias em em Lisboa, para visitar a família. Os primeiros filmes a que me lembro de ter assistido são os filmes da Disney e lembro-me de ir aos cinemas de Lisboa — o Caleidoscópio, o Tivoli — para assistir a esses filmes. Na minha cidade, a memória que tenho é de uma vez em que um homem trouxe uma carrinha com um velho projetor e mostrou O Grande Ditador, do Charlie Chaplin, aqui em Pombal. Enquanto crescia assistia a filmes na TV e comecei a ir ao cinema que tínhamos na nossa cidade, aonde os filmes chegavam umas semanas depois das estreias em Lisboa. Às vezes, assistia ao mesmo filme mais do que uma vez. Lembro-me por exemplo de ter ido ver o Empire of the Sun, do Steven Spielberg, três vezes. O meu gosto por cinema foi moldado a partir de filmes falados em inglês, especialmente os blockbusters que passavam nesse cinema”.
Nuno, um dos 15 espectadores de 15 países que no sábado partilharam as suas experiências com objetos ou formas de expressão artística no Festival de Espectador_s, a decorrer entre o Centro Cultural da Malposta e o site Collection of Spectators, a plataforma sobre a qual Raquel André construirá a sua nova coleção, Coleção de Espectador_s, relatará ainda o incêndio que no início da década de 1990 destruiu esse cinema, de como só voltou a ter acesso regular a essa experiência de ver filmes em sala quando se mudou para o Algarve, para estudar Biologia Marinha, e de como aí descobriu que havia outras salas, os cineclubes, que o levaram ao filme que lhe mudou a vida e que lhe abriu os olhos para um outro tipo de cinema: Underground, filme de 1995 de Emir Kusturica, “um verdadeiro monumento cinematográfico”, nas suas palavras sobre essa comédia dramática que se inicia na Jugoslávia da II Guerra Mundial.
O resto da história, como as dos outros 14 espectadores que em videoconferência se juntaram a Raquel André, pode ser ouvido (e visto) na íntegra na página do Facebook associada ao site. E no próximo fim de semana continua esta espécie de residência coletiva que Raquel André iniciou no sábado, com o apoio da rede europeia BeSpectACTive!, a assinalar o Dia Europeu do Espectador.
Espectadores, mais do que isso, espectadores profissionais, somos todos. Nisto acredita profundamente Raquel André, artista, performer e colecionadora, mas também espectadora. “Vejo-me como espectadora que vê, mas que também faz ver”, diz-nos sobre o lugar que ocupam os artistas neste novo lugar que começou a investigar – e colecionar – no final do mês de outubro, quando lançou o site www.collectionofspectators.com, primeiro passo na construção da Coleção de Espectador_s, cujo espetáculo tem estreia prevista para julho de 2021 na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II.
Fomos encontrá-la no Centro Cultural da Malaposta, em Odivelas, onde é possível visitar até 28 de outubro a exposição sobre as suas coleções com que arrancou este Festival de Espectador_s. O lugar que também a ela a transformou através do contacto com a arte. No caso, o teatro. Foi depois de num verão em que, adolescente, todos os dias passava em frente ao edifício a caminho da loja de fotografias em que encontrou trabalho para as férias escolares, ali começou a fazer teatro. Foi ali que se estreou profissionalmente como atriz.
Com o apertar das restrições impostas nas últimas semanas para o combate à pandemia, o festival passou a decorrer sobretudo online, acolhido pelo site que tinha já sido lançado no final do mês de outubro como arranque para o que será a Coleção de Espectador_s. Depois das coleções de Amantes, Colecionadores e Artistas, o quarto e último dos projetos em que Raquel André se desafia a colecionar o incolecionável: pessoas, a efemeridade dos encontros.
Nas últimas semanas, no site do projeto, tem vindo a lançar uma série de instruções – sete, ao todo – que continuam na maioria abertas aos espectadores que queiram participar. “Guarda uma coisa minha”, “Manifesta-te”, “Diz-me como estás agora” ou “Faz uma pergunta e dá-me uma resposta” eram algumas delas. Os resultados atualizam em tempo quase real sete murais de partilhas de espectadores de vários países. Também online será possível assistir no próximo fim de semana às apresentações resultantes das oficinas iniciadas ontem com um conjunto de 14 espectadores portugueses, que encontrarão formas de contar as suas histórias de vida através da forma como determinados objetos artísticos as marcaram. Antes desse momento, o programa conta com a apresentação de duas performances-conferência (para assistir também online) pelas duplas Ana Borralho e João Galante e Ondamarela, que “apresentarão os seus trabalhos artísticos numa relação já com os espectadores”, às quais se seguirá uma conversa sobre a relação entre artistas e espectadores. No fim, mais histórias partilhadas por espectadores. O que é ser-se espectador, afinal? É a pergunta que nos lança, que se lança a ela própria, Raquel André.