“Todos os dias recebo SMS de pessoas com cancro a perguntar se consigo arranjar vacinas da gripe”

“Todos os dias recebo SMS de pessoas com cancro a perguntar se consigo arranjar vacinas da gripe”


Bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, Ana Paula Martins, alerta que campanha de vacinação contra a covid-19 será a mais complexa de sempre. E diz que o SNS enfrenta a tempestade perfeita com o envelhecimento.


Nasceu em Bissau, neta e filha de farmacêuticos. Ainda tentou Medicina, mas a vida no pós-25 de Abril, num regresso difícil a Portugal, fez com que acabasse nos bancos da Faculdade de Farmácia, onde fez a carreira, com uma passagem pela indústria farmacêutica. É especialista em epidemiologia, galões que se parecem ter multiplicado no país nos últimos meses e que confessa que a deixam irritada. Há cinco anos bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, e a ano e meio do final do segundo mandato, foram muitas vezes que defendeu uma transformação do Serviço Nacional de Saúde para envolver os vários setores e garantir uma resposta de saúde universal, que acredita que tem estado ameaçada e pode transformar o SNS num serviço de saúde para pobres. Social-democrata “sá-carneirista” – e também católica e do Benfica – não descarta futuros papéis na política, mas admite que o cargo, de bastonária, já é político. Na semana em que tem lugar o Congresso Nacional dos Farmacêuticos, e também Congresso Mundial dos Farmacêuticos de Língua Portuguesa, fala do futuro da profissão e da saúde. E do desafio que se segue: a vacina da covid-19, que diz que será a operação mais complexa de sempre no país. Quanto à vacina da gripe, considera que o problema não foram as quantidades, este ano superiores, mas as expectativas, a procura que quadruplicou e um planeamento desfasado da realidade. E confessa preocupação: “Todos os dias recebo SMS’s de pessoas com cancro a perguntar se consigo arranjar vacinas. Não devo ser a única”.

Criticou este mês as autoridades por falarem de forma irresponsável sobre as vacinas. Acha que é cedo ou é a distribuição que a preocupa?

Quando falei em irresponsabilidade estava a referir-me à abordagem de dizer que temos uma vacinação que começa em janeiro. Tudo indica que estamos de facto muito perto de ter pelo menos três vacinas, temos bons resultados, com eficácias de mais de 90%. Nada está ainda publicado do ponto de vista científico mas as empresas já vieram fazer os seus press-releases nesse sentido.

Surpreenderam-na eficácias superiores a 90%?

Não me surpreende que a eficácia seja elevada porque estamos a usar novas tecnologias e era expectável poder haver resultados melhores, mas isso tem o outro lado que me leva a ter alguma prudência em relação a este entusiasmo exacerbado. Até aqui houve resultados preliminares, que nos dão muita esperança, mas a eficácia final vai ser dada quando houver mais tempo de exposição. E é preciso esperar por todos esses resultados para saber qual é o tempo de proteção que a vacina confere, qual é a janela de vacinação. Com a vacina da gripe, percebemos que há uma janela que varia consoante a idade. Não é recomendável começar a vacinar os mais velhos em agosto porque sabemos que a proteção que a vacina da gripe dá é de três meses aos mais velhos e de seis meses aos mais jovens. No coronavírus não sabemos ainda nada disto, nunca tivemos uma vacina. Portanto, que vamos ter uma vacina julgo que já ninguém tem dúvidas. E é um grande avanço: há uns meses havia virologistas que, de acordo com o conhecimento até à data, admitiam que não fosse possível. Nunca tivemos uma vacina para a sida e durante muitos anos muitas empresas investiram nisso. Mesmo se a eficácia real for menos de 90%, será uma estratégia fundamental para atingir a imunidade de grupo. Quando falo de irresponsabilidade é na forma como politicamente se comunica esta esperança de que em janeiro temos uma vacina. E a questão é: até podemos ter vacinas cá, mas uma coisa é ter vacinas a chegar e outra é termos as pessoas vacinadas. Vão ser definidos os grupos prioritários, mas isso tudo só pode ser concluído quando se souber as características das vacinas que vão estar disponíveis.

A ciência vai trazer-nos a vacina. O discurso político deve ser prudente, porque a própria ciência é prudente

Há o risco de as vacinas não poderem ser usadas nos grupos de risco?

O que digo é que é preciso perceber se nas contraindicações e nos aspetos de segurança há alguma questão que tem de ser tido em conta. Vamos ter respostas para tudo isto e acho que não nos deve preocupar. O que não podemos, ou não devemos, é querer misturar no discurso político aquilo que é discurso científico. A ciência vai trazer-nos a vacina. O discurso político deve ser prudente, porque a própria ciência é prudente.

As empresas quando anunciam os resultados são prudentes?

A Pfizer e logo depois a Moderna virem anunciar aos seus investidores aquilo que estão a conseguir e com isso animaram as bolsas, é o seu papel.

Não acabam por alimentar esse entusiasmo exacerbado?

Quem tem responsabilidade política tem a responsabilidade de adaptar o discurso político à ciência. Quem produz a vacina tem a sua comunicação. Se é mais ética ou menos ética, é outra matéria. Quem governa e as autoridades de saúde, e são níveis de governança diferentes, devem ter a responsabilidade e prudência de explicar o que está em causa. Se conseguíssemos em janeiro vacinar 7 milhões de pessoas ficava encantada, mas acho que o prudente é dizer aos portugueses, que são inteligentes, que não é isso.

Acha que as pessoas se podem sentir defraudadas?

Tenho receio que as pessoas, chegando a janeiro, se não virem e não compreenderem o plano vacinal depois se possam indignar. Veja-se o que se passou com a gripe. Todos os anos andamos quase atrás das pessoas para se vacinarem, este ano as pessoas ficaram revoltadas. Já defendemos que houve algumas falhas de planeamento, que não vale a pena repisar, mas veja-se o que aconteceu nas farmácias, também porque não foram transmitidas as expectativas adequadas.

Se a vacina da gripe não conseguiu acompanhar a procura, é realista que no primeiro trimestre haja tantas vacinas da covid-19 para tantos países e milhões de pessoas?

Houve países que conseguiram comprar mais vacinas, nós é que não. Há sempre uma limitação no mercado das vacinas. Já sabíamos há muito que íamos começar a ter na Europa mais dificuldades de acesso às quantidades necessárias, porque temos pessoas mais velhas, mais grupos de risco, e porque do outro lado do mundo começam agora a ter maior desenvolvimento nos sistemas de saúde. China, Índia e os próprios países africanos acabam por procurar mais a vacina. E não se aumentou suficientemente a produção. Quanto mais avançadas são as plataformas e tecnologias, maiores as exigências sobre as fábricas. Nas vacinas entrámos há mais de dez anos nesta fase de biotecnologia e tem havido uma preocupação com a reposicionamento das fábricas, que está presente na estratégia da Comissão Europeia. Portugal pode fazer parte desse roteiro com um reposicionamento das suas fábricas para a produção de biotecnológicos onde se inserem as vacinas. E voltamos à vacina da covid-19. Todos os países vão receber a vacina, a sra. von der Leyen,  já o garantiu. Produzimos muitos medicamentos em Portugal, temos 17 fábricas, nacionais e internacionais. Quem fabrica as vacinas vai olhar para os países que têm já um nível de preparação de resposta elevada. E diria que temos de aproveitar o nosso know-how e capacidade instalada para entrar na produção.

Da vacina da covid-19?

Claro que sim. Se tiverem cá fábricas, por que não? Durante quantos anos se vai estar a produzir a vacina da covid-19? Tem proteção para seis meses. Pode ser que depois das primeira inoculações nunca mais precisemos, mas na gripe todos os anos precisamos. Quem é que nos garante que não vamos precisar todos os anos de nos vacinar? Não sabemos.

O que podemos esperar no ano 1 da vacina da covid-19?

Aquilo que, prudentemente, podemos esperar: que as vacinas sejam, de facto, aprovadas. A segunda questão é esperar que os países europeus consigam organizar-se, em primeiro lugar o transporte da vacina, em segundo a distribuição/logística e depois, o que será muito importante nesta vacina, é definir os locais de vacinação o mais próximo de pessoas. Primeiro porque os grupos mais prioritários serão os grupos que precisam dessa proximidade, são pessoas que não podem ter grande incómodo para chegar ao sítio. Depois porque têm de fazer duas doses.

Será o mais difícil, esse timing?

Pode ser com um intervalo de duas semanas. E estamos a falar de fazer isto no meio da pandemia. Se agora para vacinar para a gripe estamos com agendamentos para janeiro, aqui teremos de planear isto para vacinar 7 milhões de pessoas. 

Nunca houve uma campanha de vacinação deste género?

De todo, nem no número de pessoas nem em complexidade. É preciso dizer que Portugal é dos países com maior sucesso no seu plano de vacinação, com elevadas coberturas vacinais e baixa hesitação vacinal. É algo em que temos tido êxito. Este será mais um desafio e importa sobretudo planear e a organizar. Desta vez não é só definir quando se começa a vacinar e quem são os grupos prioritários – isso é o mais fácil. Temos de garantir a logística de armazenamento, que para uma vacina é -80 graus, outra -20 graus e da Astrazeneca é a única que pode ser conservada entre 2 e 8. E além do armazenamento, o transporte. Há uma janela temporal para transportar uma vacina de -80 a temperaturas mais elevadas. Os americanos, no caso com a vacina da Pfizer, estão a contar com cinco dias para a distribuição [guardando a vacina num congelador normal]. Não pode passar esse tempo entre chegar e ser dada, se não a vacina vai para o lixo.

O Governo já garantiu que está a ser tudo planeado e foi criada da uma task-force. Vemos alguns anúncios mais detalhados noutros países europeus, mas em termos práticos não há muita informação. Parece-lhe que há algum atraso ou há tempo para esse planeamento?

Os anúncios dos outros países não são melhores que os nossos. Talvez o Boris Johnson tenha sido um bocadinho mais prudente. Mas os anúncios são todos iguais. Neste momento não houve nenhum envolvimento das farmácias, mas tanto quanto consigo perceber só agora é que aparentemente vamos começar a trabalhar efetivamente no plano de implementação. Sabemos que há uma pessoa à frente deste esforço que é o dr. Francisco Ramos. Penso que é muito importante termos uma pessoa responsável perante o país por esta operação e realmente deixa-nos descansados por ser alguém que foi secretário de Estado, administrador hospitalar, conhece muito bem o sistema de saúde e que tem um sentido prático.

Na campanha da gripe faltou sentido prático?

Faltou perceber-se que se estava numa pandemia, uma adaptação à realidade. É preciso dizer que não foi tudo mal feito, vacinou-se muita gente. Mas passou-se uma mensagem de que havia vacinas para toda a gente, quando o toda a gente eram os grupos de risco. E habitualmente não há problema de alguém que não é grupo de risco vacinar-se, mas para isso tem de haver vacinas. Tivemos uma comunicação desfasada. Este ano até criancinhas as pessoas levam à farmácia para serem vacinadas. Há esta ideia de que a vacina da gripe protege alguma coisa contra a covid-19 e alguns estudos mostram isso.

A Ordem defende que as farmácias entrem no plano da vacinação da covid-19?

Já disse que acho um risco não contarem com as farmácias quando se chegar à fase da vacinação em massa. Para atingir imunidade de grupo, temos de vacinar o maior número de pessoas possível o mais rapidamente possível.

Isso dependerá das vacinas que vierem.

Sim.

Mas então acha que as farmácias devem entrar só aí?

Acho que as farmácias devem administrar quando quem está a desenvolver a operacionalização entender que isso é necessário. Agora entrar no planeamento devem entrar já, senão não vão conseguir entrar nessa altura. Têm de se apetrechar, é preciso precaver como será feito o agendamento, o recenseamento das pessoas. Não sei qual é a altura certa para as farmácias terem vacinas, isso é a comissão que sabe. Para mim faz todo o sentido que os farmacêuticos possam vacinar, não sei se na primeira, segunda ou terceira vaga de vacinas. Uma coisa sei: se as farmácias não forem envolvidas já, não vão conseguir vacinar em vaga nenhuma. As farmácias não são os centros de saúde, mas tal como contratualizaram resposta para a gripe e estão agora a fazer com os testes rápidos de antigénio, estão disponíveis.

Não pro bono?

Não me vou meter nessa questão. Não estou a dizer que é irrelevante, mas nesta fase em que estamos, mais do que definir a remuneração que os farmacêuticos devem ou não devem ter, diria que muito mais importante é definir se a vontade é que os farmacêuticos, através da rede de farmácias, entrem, para saber que condições existem. Temos 600 e tal farmácias em insolvência, não sei se terão capacidade de se apetrechar. O mesmo na logística. Na ordem temos um grupo de distribuição e são muito claros: se os investimentos tiverem de ser para transportar coisas a -80 graus, não há capacidade financeira. O Ministério da Saúde tem de ter esta visão alargada sobre o setor da saúde e em que condições está.

Tem sido muito crítica ao longo do seu mandato dessa falta de uma visão mais abrangente.

Sempre a defendi. O SNS com certeza que é a matriz do sistema de saúde português. Orienta o modelo de organização para garantir cobertura universal e equidade de acesso. Mas hoje os tempos são outros. Há 40 anos as pessoas morriam aos 60 anos e agora morrem algumas aos cento e tal. Tinham duas ou três doenças, que nem eram diagnosticadas, agora têm sete ou oito. Como não somos um país rico, e vamos ser mais pobres, mais agora depois da pandemia, desperdiçar recursos que temos, na nossa opinião, não faz sentido. Defendo isto mas nunca disse que não deve ser o SNS a definir exatamente em que áreas é que intervém e em que áreas é que são precisos outros agentes em complementaridade. Dizia-se que a anterior Lei de Bases da Saúde promoveu a concorrência entre setores, acho que nunca foi isso que os outros setores quiseram. Aliás, veja-se o setor social, o setor privado não lucrativo, que é o grande responsável por termos cuidados continuados, se não não tínhamos. As farmácias são as grandes responsáveis por termos dispensa de medicamentos. Os outros operadores na área privada, neste momento até com os centros de saúde mais limitados, são quem consegue cobrir medicina geral e familiar e consultas de especialidade possivelmente numa grande parte da população, não direi a maioria.

Quem defende o SNS não pode não defender a sua transformação com lucidez

Para quem pode pagar ou tem seguros.

Mas é por isso que digo que quem defende o SNS não pode não defender a sua transformação com lucidez. Porque, se não o fizer, o que vai acontecer é empurrar as pessoas para fora do SNS. A senhora ministra diz “não nos empurrem” [para o privado]. Digo o mesmo, não empurrem os portugueses para fora do SNS. Os privados estão a fazer o seu trabalho, desenvolveram-se tecnologicamente, conseguem recrutar profissionais de saúde. As pessoas costumam dizer que se vai para o privado porque se paga mais, mas o modelo do privado em termos de exigência e desempenho é muito importante e permite também reter profissionais. Mas voltando a esta questão, que acaba por ir parar às vacinas, é que quando defendemos o acesso à saúde temos de olhar para os recursos que existem no país de uma forma ideologicamente independente. Para mim, a única ideologia aceitável para responder aos portugueses é o que está escrito na Constituição: temos de garantir acesso universal, o mais universal possível, e com equidade, corrigindo desigualdades e garantindo aos portugueses a segurança de que, quando estão doentes, têm acesso. Foi o que o SNS sempre fez: aos pobres, aos ricos, sempre os tratou. A pergunta é: fizemos isso até agora, umas vezes pior, outras melhor. Com a mudança demográfica e estes desafios que temos – a pandemia é só um, há de haver outros – a questão é como é que vamos continuar a fazer isso. E aquilo que tenho dito é que não pode ser da mesma maneira. E o não poder ser da mesma maneira não é arranjar negócio para os privados. Isso é uma miragem ideológica que naturalmente compreendo que pode interessar a algumas pessoas para simplificar, mas uma questão complexa não se pode simplificar assim.

Há um ano, num discurso, assinalou que a despesa per capita em saúde era menos de metade da UE e dizia que era preciso perguntar onde é que os portugueses querem ver os seus impostos investidos. É essa pergunta?

E diga-se que pelo menos até agora temos sido mais eficientes que os outros, porque gastamos muito menos e vamos tendo bons resultados. Mas temos de conseguir preservar o melhor que conseguimos que o SNS e aqui é que acho que a ideologia deve parar. Não quero ter um SNS só para os pobres, um país onde quem é pobre não é tratado.

Com esta crise acabou por haver um acelerar do investimento do SNS. Não vê sinais diferentes?

O outro Governo teve a troika, este teve a pandemia. Acho que a vontade dos sucessivos governos tem sido de reforçar o SNS, a questão é se é suficiente para o país. Uma coisa é a vontade política, que une os portugueses da esquerda à direita, outra é ser capaz de encontrar soluções realistas, práticas e pragmáticas para reorganizar os cuidados de saúde e financiá-los adequadamente. Precisamos de mais dinheiro na saúde. Claro que esse dinheiro tem de vir de algum lado e não vou agora discutir aqui se devia vir de outros sítios de onde andamos a meter dinheiro.

Fala da TAP ou Novo Banco?

Acho que essa discussão tem-se nas urnas. Se tiver um Governo que privilegia em vez de saúde e educação recuperar empresas que eventualmente não são estratégicas para o país e que nos custam, devido a má gestão, o que custam, quando for lá pôr o meu voto faço opções. Agora, o que digo é que não há ninguém que não defenda um SNS forte, que retenha os profissionais de saúde, que dê dignidade às carreiras. Geralmente os farmacêuticos nos hospitais estão em exclusividade, mas temos enfermeiros a trabalhar em 3 ou 4 sítios. Precisamos de investimento, orçamentos plurianuais, como se faz na Defesa e na Segurança Social, para que as instituições possam funcionar de uma forma minimamente programada. Não podemos ter um Centro Hospitalar de Lisboa Central que é uma geringonça autêntica, que um dia cai um teto do lado, outro dia pinta uma parede, no outro vai arranjar mecenas para comprar mais umas cadeiras. Não é gerível assim, sobretudo quando estamos diante de centros de enorme expertise que não podemos perder no SNS nem podemos perder no país.

Pensa que é a falta de planeamento que tem levado a alguma degradação?

De planeamento e de priorização. Acha-se sempre que o SNS aguenta tudo. Ai aguenta, aguenta. E se calhar aguenta, mas chegámos a uma altura em que, até pelo peso das determinantes, envelhecimento, pobreza e más condições de vida dos mais velhos, lares, pandemia, é uma tempestade perfeita. E repare, nunca disse que o SNS não respondeu bem à pandemia. O que é evidente é que não foi capaz de responder bem às outras doenças que não a covid. Num primeiro momento em nenhum lado do mundo, nenhum serviço de saúde, público ou semi-público, foi capaz de o fazer. Mas a partir de determinada altura, foi preciso recuperar. Sinto sinceramente que se há uma coisa positiva – e é difícil ver-se alguma coisa positiva num ano que tem sido pesado  – que é percebermos que, como dizia o Papa Francisco, ninguém se salva sozinho, estamos no mesmo barco. Precisamos de uma ideologia humanista, não deixar que as pessoas que têm menos recursos deixem de ser tratadas. Felizmente nunca se viu em Portugal uma pessoa dizer que acha que não se devia ter um plano nacional de vacinação financiado pelos impostos, dar a vacina ao filho da pessoa que não tem dinheiro. Somos através do SNS um povo profundamente solidário e esse é o princípio ideológico. Agora a forma como lá chegamos pode ser diferente. Há partidos que pela sua forma mais liberal acham que deve haver mais mercado, outros ser mais estatizante. Eu não defendo a visão estatizante e creio que não será suficiente.

Sempre foi mais liberal?

Não posso dizer que sou social-democrata porque se não vão dizer que sou do PSD.

É?

Estou inscrita como militante há 20 anos mas acabo por ser uma militante que não existe. Também sou cristã e católica e do Benfica. Nunca fiz política dentro do PSD, não sei se me revejo neste PSD. O que sou verdadeiramente é uma sá-carneirista.

Foi Sá Carneiro que a levou a inscrever-se no partido?

Era muito miúda, mas foi a imagem que ficou e sobretudo essa corrente transformista, da social-democracia do norte da Europa, de sociais-democratas moderados. E tivemos pessoas assim na saúde: o dr. Paulo Macedo, no meio da troika, defendeu ou não com unhas e dentes o SNS? O Dr. Paulo Mendo? A Dr. Ana Jorge, de outro partido, o Dr. Adalberto Campos Fernandes. Houve sempre um pacto implícito de ministros do PSD e do PS sobre o SNS. Enquanto cidadã, e estou a um ano e meio de terminar o mandato como bastonária, lutarei sempre por saúde para todos, um SNS que se fortaleça através daqueles que, estando no mercado de saúde, podem prestar serviços custo-efetivos e que, dessa forma, reforcem o SNS e não o desviem para uma visão estatizante em que o financiamento é público e a prestação é pública, mas 30% da despesa em saúde fica a cargo das família, além dos impostos.

É uma das fatias mais elevadas da Europa.

Portanto vamos sempre aos mesmos, os portugueses, que quando não têm resposta no sistema que financiam com os seus impostos pagam do seu bolso.

Mas como é que o resolveria, taxando mais as empresas, consignando novos impostos?

Não, o que digo é que se são os portugueses que pagam, temos de dar resposta as pessoas. Não podemos aumentar impostos e não fazer traduzir isso na vida das pessoas. Quando aumento impostos, o que digo aos portugueses é “passem para cá dinheiro porque eu, enquanto Estado, sou capaz de gerir o vosso dinheiro e garanto que vão ter saúde, vão ter dentista, vão ter psiquiatra”. Podia dizer outra coisa, numa visão mais liberal, dizia “não têm de pagar muito, é só para os pobrezinhos, e no resto estão por vossa conta”. Não é o que advogo. Como felizmente tenho um rendimento bastante simpático, pago um escalão de IRS elevado e não me queixo. Queixo-me é de não ter certeza que todos os meus semelhantes têm de facto, e já está a acontecer isso, o que precisam quando precisam. Esta visão solidária, transformista e capaz de olhar para as realidades não de uma maneira imutável é o que me define a mim como social-democrata. Ou seja, para mim o SNS é uma pedra absolutamente fundamental na prestação de cuidados. E quando se discute a separação entre financiamento e prestação de cuidados, o que defendo é que devíamos ter um CEO para o SNS. Talvez não seja uma boa palavra, mas ter alguém como existe no sistema de saúde inglês, um commander in chief, alguém que gerisse o SNS, fosse responsável pelos acordos, pelas convenções, no fundo o que faz a ACSS mas com um responsável.

Um administrador do SNS?

Uma separação clara e objetiva do ministro de Saúde, que é quem governa o sistema nacional de saúde e orienta políticas públicas para responder à Constituição – e um Governo mais de esquerda terá políticas públicas diferentes de um Governo mais de direita. Outra coisa é a gestão de uma máquina tão complexa quanto a organização e prestação de cuidados de saúde para todos de acordo com a Constituição. E é aí que sou transformista. Não quero falar de um ministro em funções, mas independentemente de concordar mais com a Dra. Marta Temido numas coisas do que outras, não há nenhum ministro que consiga, numa epidemia ou fora dela, tomar decisões sobre o que acontece no hospital não sei quantos. Ou damos autonomia às pessoas, budgets próprios, capacidade de responderem e que, quando corre mal, são substituídas, ou então não conseguimos. Da mesma forma que, se eu fosse autoridade de saúde, jamais aceitaria uma ordem do ponto vista técnico. E por isso digo que temos de separar as coisas. Um ministro governa, responsabiliza-se por o budget ser adequado, políticas públicas, sabe dizer porque é que se investe num plano de vacinação que tem mais esta vacina ou aquela, e depois há uma autoridade de saúde e há os outros organismos. A dra. Graça Freitas, com toda a estima que tenho por ela, é que é responsável pela DGS. O presidente Rui Ivo é responsável no Infarmed. O dr. Fernando Almeida é responsável no INSA. Como eu sou na Ordem, e às vezes nem sei, só quando me cai em cima. Nunca aceitaria, sendo presidente de um organismo destes, que um ministro me dissesse, sei lá, vamos ter vacina distribuída em janeiro.

Acha que é o que tem acontecido? 

Não, o que acho é que se confundem essas dimensões e é péssimo para o país. E acho que a esse nível é pior do que acontece noutros países. Acho que acontece um bocadinho por todo lado, não sendo nós culturalmente suecos ou países nórdicos, mas acho que os ingleses, que têm lá uma grande pandemia, conseguem fazer muito bem essa separação. Voltando às farmácias e vacinas, se quem politicamente responde perante os portugueses, que é o ministro da Saúde e o primeiro-ministro, com o pacote financeiro que tem, perceber que uma parte disto pode ser feito nas farmácias, a pergunta é porque é que não há de ser? Aconteceu nos testes: quase 50% dos testes para a covid-19 foram feitos através e convenções.

Surgem agora relatos de testes rápidos feitos nas farmácias e os resultados não são reportados à DGS. Isto faz sentido?

O reporte não é diretamente à DGS, mas numa plataforma que é o sinave-lab. É uma matéria de que nós na Ordem não temos nenhum relato. Recebemos sim muitas perguntas de colegas sobre se podem ou não fazer e em que condições. Entretanto falámos com as autoridades, saíram circulares e neste momento o que é dito é que a farmácia tem de estar inscrita na Entidade Reguladora da Saúde. Mas temos pelo menos duas farmácias que fizeram a sua inscrição na ERS e estão à espera há uma semana. Se se monta um sistema que depois demora a responder…

Mas mesmo que o processo seja lento, as farmácias podem fazer testes se não comunicarem resultados?

A Ordem é clara sobre isso: enquanto não estiverem reunidas as condições, as farmácias não devem fazer testes ao público, ponto final parágrafo. Agora os testes estão à venda, não posso impedir as pessoas de comprar testes. Se quiser dou-lhe um site para mandar vir testes para sua casa. É uma commodity neste momento. As autoridades têm de atuar. Uma coisa que temos feito bem é a testagem. Houve um problema no rastreio de contactos, porque com 80 mil casos ativos com certeza que são muitas pessoas para contactar. Mas a estratégia de testagem, sob o ponto de vista científico, tem sido muito bem conseguida em Portugal. Temos sido vítimas do nosso sucesso, porque testamos e reportamos e se calhar outros não testam tanto. É um exemplo de envolvimento dos outros setores, como poderá ser a vacina e mesmo agora para doentes com covid e não covid começou-se a dialogar para ver as condições e capacidade instalada para receber doentes. Há doentes que querem continuar a ser seguidos no seu hospital, não querem ir para um hospital privado, mas o que é preciso é garantir resposta aos casos em que isso é necessário. E nenhum ministro consegue fazer este tipo de gestão no dia a dia, devia ser o tal administrador do SNS, alguém que no fundo fosse responsável por esse planeamento.

Imagina-se um dia ‘ministrável’?

Já sabe que sou católica, do Benfica e ilustre desconhecida do PSD, mas a minha vida pessoal tem sido de experiências que surgem. Nunca pensei em ser bastonária, nunca o desejei. Chegou um momento em que algumas pessoas vieram falar comigo.

Era professora na Faculdade de Farmácia?

Sim. E trabalhei dez anos na indústria farmacêutica, adorei, foi talvez dos sítios onde mais gostei de trabalhar e aprendi.

Não viu nada de que não gostasse?

Vi sempre coisas de que não gostei em todos os sítios onde passei e vi muitas coisas de que gostei e é de tudo isso que se faz a nossa aprendizagem. Todas as coisas que aceito depende dos projetos e das equipas. Sou uma mulher livre e pauto-me por princípios que nunca ultrapasso. Tenho linhas vermelhas. Não faço ideia do que vou fazer daqui a um ano e meio. Professora da universidade sou. Tenho uma grande ligação às Humanidades apesar de ser de uma área científica. Depois tenho a farmácia e apaixona-me esta questão da Nova Medicina, como dizia João Lobo Antunes: podermos transformar, mesmo com tecnologia, a vida das pessoas com o nosso cuidar. E sou acima de tudo uma patriota, tenho um orgulho gigante no meu país e acho que temos um povo extraordinário e ao fim destes anos de democracia vemos o retorno do investimento feito na educação. Tenho alunos hoje que são os melhores que já tive na vida. Temos tudo para continuarmos a ser um país que é pequeno em território mas muito grande em língua. E neste congresso dos farmacêuticos que temos esta semana é também o congresso da lusofonia, dos farmacêuticos que falam a mesma língua e que têm estratégias globais apesar da grande diferença que existe entre Portugal, Moçambique, Brasil. Todos queremos a mesma coisa, saúde para os cidadãos. Mas respondendo, ganhei a minha liberdade através de princípios e conhecimento. Tudo o que me acontece na vida acontece porque aquela oportunidade aparece. Nunca penso, nem faz parte da mim, achar que vou ser isto ou vou ser aquilo. Mas digo-lhe: se o país quiser vir a ter um dia outra vez, havendo honrosas exceções, gente bem preparada e qualificada tem de começar a modificar a forma como os partidos se organizam e escolhem as pessoas para as listas de deputados. Quem fez a democracia em Portugal eram homens e mulheres que tinham passado, presente e futuro para além da política. E não viviam na espuma dos dias, pensavam para além da legislatura. Se fazer política for isto, e não falo de estar na João Crisóstomo ou no Ministério, acho que eu, como muitos portugueses, podemos vir a fazer política. Os partidos têm tido muita dificuldade em recrutar quadros, honrosas exceções, que queiram estar desde logo no nosso Parlamento. E lá está, porque sou uma social-democrata transformista, europeísta e virada para os modelos do norte da Europa, acho que mais importante que quem governa é quem pluralmente está no Parlamento.

Iria para um lugar de deputada?

Se calhar para um lugar de deputada era capaz de ir, dependendo do projeto.

Nunca foi convidada?

Não. Até agora fiz um caminho académico muito exigente, fiz a agregação na faculdade há pouco tempo. Estou agora numa sabática, a fazer um curso de especialização na London School of Hygiene & Tropical Medicine.

Sobre quê?

Fármaco epidemiologia e farmacovigilância, questões como a segurança das vacinas. E quero completar este ciclo. Não interrompo ciclos de vida. Vou por onde me levam os meus próprios passos, como dizia José Régio. Agora, se a pergunta é: recusaria um projeto político? Num projeto político estou eu. Quer projeto mais político do que ser bastonária da Ordem dos Farmacêuticos?

É um projeto político ser bastonário?

Não é partidário, mas é político. É defender a minha classe, naquilo que é legítimo, tendo em conta o interesse público. Não vou dizer que tudo é política até comer pão com manteiga, mas política é tudo aquilo que nós, na nossa cidadania ativa e participativa, fazemos. Se amanhã houver um projeto de natureza política que me agrade e que a equipa que lá está veja utilidade na minha preparação, com certeza que sim. Não acredito em protagonistas solitários. Acredito profundamente no valor das equipas. Aos 55 anos, espero ainda ter muito para viver, mas acima de tudo temos noção do que não queremos. E há uma coisa que não quero, até para honrar os meus mestres, pessoas como Maria Odette Ferreira, Carlos da Silveira, o Jorge Torgal que foi meu professor, o Henrique de Barros. Não quero estar a fazer nada que não seja feito com felicidade, paixão, racionalidade e competência.

Tem um mestrado em epidemiologia. Também fica irritada com os comentadores de bancada como a diretora-geral da Saúde?

Fico. Fico mais que irritada e acho que estão a prestar um mau serviço ao país. E até me custa que a Associação Portuguesa de Epidemiologia, de que faço parte, e que tem uma presidente que é uma pessoa que estimo profundamente e que é uma grande epidemiologista, oiça todos os “epidemiologistas” e ainda não se tenha insurgido. Uma folha de excel aguenta tudo. Acho que é uma afronta aos epidemiologistas. Mais valia terem acionado uma coisa que está na legislação desde 2016 e nunca saiu do papel que são as unidades de epidemiologia nos hospitais.

Seriam importantes fora da pandemia?

Permitiriam apoiar as opções em termos de políticas públicas. Estudarmos por exemplo qual é o peso da pobreza nos resultados de saúde. A epidemiologia já estudou que a educação, o emprego, o rendimento, a cultura, os comportamentos de risco e coesão social são 50% dos determinantes em saúde.

Com essas unidades seria possível medir isso no país, em cada zona?

Sim, ligando-se aos cuidados primários, com epidemiologistas, estatísticos, médicos, profissionais de saúde no geral, conseguiriam ter dados do mundo real para adaptarmos estratégias. Foi como começámos a lidar com a covid-19 antes de haver ensaios clínicos ou estudos que demonstrassem a eficácia de medidas, por exemplo das máscaras. No fundo foi o que fez o John Snow – consagrado como primeiro epidemiologista, não é o da Guerra dos Tronos (risos) – quando controlou um surto de cólera em Londres. Só muitos anos depois quando apareceu um microscópico mais potente é que viram que naquela água que ele tinha guardado havia um bichinho que era o vibrião colérico, mas ele o que fez foi isto: observou, viu que toda a gente ia a uma fonte, mandou tapar a fonte e a epidemia acabou. É a primeira coisa que nos ensinam nas aulas de epidemiologia, porque a epidemiologia tem métodos. E já o Sun Tzu o dizia há mais de 2000 anos: os problemas complexos resolvem-se como os problemas simples, com método.

As farmácias estiveram sempre abertas. Que lhe relatos lhe chegam dos farmacêuticos, o que sentem na população?

Pessoas muito preocupadas, isoladas. E começam a ver-se dificuldades financeiras. A Associação Nacional das Farmácias injetou quase 80 milhões de euros em crédito para pessoas que não podiam pagar receituário. E vai ser pior porque se prevê uma recessão de 10%. Tudo se junta: o desemprego, o isolamento, o receio, o medo da pandemia e o medo da pobreza. As farmácias acabam por ser antenas autênticas.

Chegam-vos relato de burnout?

Estamos a fazer um estudo. Tivemos uma linha de apoio psicológico, não tivemos muita gente a recorrer. Não sei se é uma questão cultural, os farmacêuticos estão muito habituados a recorrer a apoio psicológico, mas há casos de exaustão. Mesmo a questão logo ao início, de haver falta de gel, de máscaras, as pessoas quererem medicamentos sem receitas… Viravam-se contra os farmacêuticos. Foi duro.

Nas últimas semanas voltou o stresse com a vacina da gripe. Chegaramo-nos relatos de farmácias que chamaram seguranças, até de ameaças de morte.

Nunca na vida vivemos uma situação como esta nas farmácias. Não assisti a nenhuma ameaça de morte nem me relataram, mas ameaças de pancadaria e verbais, isso houve centenas.

Pessoas que tinham encomendado a vacina e ficaram na lista de espera?

Que encomendaram e a vacina não chegou ou de farmácias que disseram que já não podiam aceitar pedidos. “Mas como é que não pode se na televisão dizem que há vacinas”, “Sou seu cliente há não sei quantos anos…” Todos os dias recebo SMS’s de pessoas com cancro a perguntar se consigo arranjar vacinas. E de certeza que não sou só eu, os enfermeiros também devem receber nos centros de saúde.

Qual é o ponto de situação?

As das farmácias acabaram. Estava programado no final de novembro recebermos a segunda metade e depois destas não vão chegar mais. Portanto vamos ter as 220 mil que faltavam, num total de 440 mil. Além destas houve 200 mil dos centros de saúde que foram distribuídas nas farmácias para grupos de risco.

Mas acaba por ser menos do que ano passado?

São menos as que as farmácias conseguiram comprar. No ano passado tivemos 500 mil. Este ano tínhamos pedido mais de 600 mil. Quando juntamos as que vieram do SNS, no fundo não tivemos menos do que no ano passado. O que tivemos foi quatro vezes mais procura. Algumas pessoas, também por causa da pandemia, não quiseram ir aos centros de saúde, mas antes já vacinávamos muitos idosos. Agora mandamos as pessoas para os centros de saúde.

Tem havido muitos casos de profissionais infetados nas farmácias?

Não temos esses dados mas houve certamente e tivemos farmácias que fecharam. O que leva alguns farmacêuticos com farmácias mais pequenas e com menos condições a não quererem entrar nos testes rápidos é o receio disso mesmo. Quem vai fazer o teste é a partida alguém que tem sintomas, portanto a probabilidade de estar infetada é maior, embora possa ser outra coisa qualquer. Mas neste momento vamos ser sinceros: a infeção está na comunidade, em cada dez pessoas que entram na farmácia, há seguramente duas que estão infetadas.

Neste Congresso Nacional dos Farmacêuticos discutem a saúde para a década. Como imagina as farmácias daqui a dez anos?

Imagino que uma das coisas que vai ficar da pandemia é a necessidade de reforçar as políticas de proximidade, que envolvem também as autarquias e os autarcas foram fundamentais na pandemia. Acho que as farmácias e os farmacêuticos, se fizerem bem o seu trabalho, terão um papel. Temos as farmácias enquanto empresas e locais de dispensa de produtos e depois temos uma direção técnica farmacêutica. Gostava muito que a farmácia não se afastasse da intervenção farmacêutica.

E está-se a afastar? Vemos por exemplo venda de produtos de homeopatia.

Gostava que isso não acontecesse. Gostava que os farmacêuticos, que são uma profissão científica, fundamentassem a sua ação na ciência.

O que tirava das farmácias?

Não me choca ter produtos de saúde nas farmácias. A parte da dermo-farmácia é muito importante, há muitas pessoas com problemas dermatológicos, até na área de oncologia, e há produtos de saúde que hoje vemos nas farmácias que têm muita relevância na saúde. Mas para mim a essência da farmácia são os medicamentos e promoção da saúde, tudo o que sejam colaborações com a comunidade na área da prevenção. Testes de orientação para diagnóstico têm também o seu espaço

Uma da suas propostas é que os farmacêuticos pudessem fazer renovação de receituário de doentes crónicos.

Acho que é um papel importante. A adequação terapêutica é a terceira causa de internamento e de perdas em saúde sobretudo na população mais idosa, que fazem 10, 15, 20 medicamentos. E na intervenção farmaco-terapêutica, quer no hospital onde já fazem isso na consulta farmacêutica, quer nas farmácias de proximidade quer nos centros de saúde, os farmacêuticos podem ter esse papel. Porque é que não temos farmacêuticos nos centros de saúde? Os espanhóis têm. Não é para dispensar medicamentos, mas para fazer esta intervenção. É uma das propostas que vou lançar e uma boa medida neste orçamento do Estado seria haver pelo menos um farmacêutico em cada centro de saúde.

Já se mostrou contra a proposta de dispensa de medicamentos hospitalares nos centros de saúde em vez das farmácias. Não pode haver mais-valias?

Não faz qualquer sentido. Os centros de saúde são assim tão acessíveis que se possa pôr o milhão de portugueses que entram todos os dias nas farmácias a ir buscar medicamentos aos centros de saúde? Lá está uma visão estatizante. Não há nenhuma experiência assim na Europa, mas podemos experimentar. As nossas farmácias são uma das melhores redes da Europa. Deixem as farmácias fazer o seu trabalho e comece-se a colocar nas equipas dos centros de saúde farmacêuticos, que ajudariam na adesão terapêutica, projetos com as farmácias. Já sei que no Facebook tenho os enfermeiros zangados comigo porque digo que os farmacêuticos vão ocupar o lugar deles. Também digo, se é assim, que entreguem os medicamentos hospitalares aos enfermeiros, agora não se coloquem biológicos de mais de mil euros a ser entregues por administrativos. O que penso é que deve haver racionalidade. Interesses vai haver sempre. A minha classe não é isenta de interesses, como é óbvio.

Durante muitos anos as farmácias foram um negócio rentável, com trespasses de milhões. A redução dos preços dos medicamentos acelerou a mudança?

As farmácias estão muito diferentes do que eram, o negócio já não é apetecível. São um negócio que tem de ser bem gerido e o que defendo é que tudo o que é serviço público tem de ser remunerado.

E um dos objetivos do seu mandato?

A valorização do trabalho dos farmacêuticos é claramente. Penso que o país não pode desperdiçar os 10 mil farmacêuticos que estão nas farmácias e que podem ajudar a construir políticas de saúde de proximidade que vão ser absolutamente essenciais no Portugal de 2030, 2040 e 2050, que vai ser um Portugal velho, de gente velha.

 O sentimento de serviço público está nas pessoas, não está em quem nos paga o ordenado

O seu pai era o único farmacêutico de Bissau. Que memórias transporta para hoje desses tempos?

Nasci em 65. As memórias são de ver o meu pai a manipular na farmácia, vinha de uma geração de farmacêuticos, que faziam os medicamentos. Lembro-me de ver muitas pessoas à porta da farmácia, que era no hospital civil. Eu era muito pequena quando ia com ele, tinha uns cinco anos. As pessoas tratavam o meu pai por sr. doutor e eu achava estranho aquilo. Se ele se chamava Aniceto António Martins porque é que lhe chamavam sr. doutor? Um dia perguntei-lhe: “porque é que te chamam aquilo?”. Ele respondeu: “Porque estudei para fazer aquele trabalho”. Incutiu-me o gosto pelo estudo. E como é que eles sabem que és doutor da farmácia? Ele tinha um anel com uma pedra roxa, que é a pedra da farmácia, como eu também tenho. Dizia que era de verem o anel (risos). Nunca quis ser farmacêutica, quis se médica, como ele também tinha querido ser médico.

Não entrou no curso?

Não entrei na altura em Lisboa e não tinha condições para ir para fora. Foi depois da revolução, o meu pai morreu, vim para Portugal. Foram tempos muito difíceis. Mas fui para Farmácia e gostei, era o meu destino. Aquela proximidade dele com as pessoas marcou-me imenso. Mesmo quando foi a altura da revolução, e na Guiné houve momentos tensos, o meu pai nunca deixou de circular à vontade, porque era encarado como alguém que ajudava as pessoas a tratarem-se. E outra coisa que me marcou sempre muito. A minha mãe, como todas as pessoas que tinham cursos eram aproveitadas para dar aulas, era professora primária. O meu pai dava Química no liceu e a minha mãe dava aulas na escola onde eu andava. Andei sempre em escolas públicas. Nessa altura, as pessoas cantavam o hino e entravam. Eu podia entrar com a minha mãe e a maior parte dos brancos entravam com os pais, mas entrei sempre com os outros meninos. O meu pai deixava a minha mãe à porta da escola e a mim deixava-me sempre atrás da escola. Uma vez perguntei-lhe porquê. E ele respondeu: “não és aluna? Entras com os alunos”. Isto não é nada do outro mundo, mas quando se cresce a perceber que tudo o que somos é aquilo que somos como humanos, marca-nos. O meu pai, tudo o que tinha à mão, e não era muito, era para todos. Fazia o que dependia dele como farmacêutico. O sentimento de serviço público está nas pessoas, não está em quem nos paga o ordenado.