Conflitos congelados: cuidados ao descongelar


Putin deixou Erdogan decidir o vencedor no Nagorno-Karabakh, contra a Arménia, um membro da CSTO, a aliança militar promovida por Moscovo.


As guerras nas periferias dos impérios, as guerras por procuração, as guerras civis, os conflitos ditos congelados são preferíveis aos conflitos abertos entre Estados ou, ainda pior, entre blocos político-militares. No entanto a multiplicação das “pequenas guerras” aumenta o perigo de escalada em direcção a uma “grande guerra”. Tal pode acontecer por má avaliação do risco de escalada ou por fazer parte de um plano determinado. A terceira guerra mundial estaria prometida para o conflito entre os EUA e a China, sendo improvável uma calendarização para breve e sendo muito provável, para nós, europeus, uma geografia longínqua, algures no oceano Pacífico.

No entretanto, e na fronteira próxima da União Europeia, multiplicam-se as pequenas guerras, à revelia da UE, demasiado distraída com a pandemia, os vetos orçamentais das democracias iliberais, o Brexit e o efeito dos raios gama no comportamento das margaridas. Pelos EUA não se aceitam marcações para antes de 20 de Janeiro de 2021. Sobram tempo, espaço e oportunidade para rearranjos de fronteiras, vinganças frias, lições exemplares e alianças interesseiras mas contranatura.

Desde os finais de Setembro que no Nagorno-Karabakh (NK) – o arquétipo do conflito congelado – se passavam coisas. Primeiro ressurgiram as escaramuças entre a população arménia no Alto Carabaque e a vizinhança azeri, ambas descontentes com as diferenças de nacionalidade e de religião, com agravos acumulados pelos resultados da guerra começada em 1991, depois de Arménia e Azerbaijão terem passado de repúblicas soviéticas a estados independentes. As contas por saldar remontam à queda do Império Otomano, à sovietização do Cáucaso e à atribuição por Estaline, enquanto comissário das nacionalidades, do NK, maioritariamente povoado por arménios, ao Azerbaijão. Na guerra começada em 1991, os russos venderam armas, munições e mercenários a ambos os lados e os azeris tiveram a lembrança de importar do Afeganistão alguns milhares de mujahedins. Em 2020 foram outros mais milhares de rebeldes sírios que se juntaram às forças azeris, trazidos pelos turcos. Erdogan e Putin puseram-se de acordo para ajudar o Azerbaijão a recuperar grande parte do NK.

O Cáucaso permitiu em tempos a Putin um enorme reforço de poderes, a pretexto do combate à rebelião na Chechénia (apoiada pela Arábia Saudita) e aos terroristas muçulmanos. Vinte e seis anos depois da crise dos reféns de Beslan, Putin pactua com a importação turca a partir da Síria de combatentes islâmicos… A inflexão política é motivada por um forte cheiro a gás. Putin não quis deixar a Erdogan o controlo dos gasodutos que transportam para a Europa o gás natural do Cáspio, a começar pelo do Azerbaijão. Ao mediar a paz entre os vencedores azeris e os derrotados arménios, Putin pôde expedir já um forte contingente militar russo para o NK para assegurar o cumprimento da trégua. Erdogan também já anunciou que irá enviar para o NK um contingente de peace-keepers turcos.

A gestão de mais um conflito fugiu ao Conselho de Segurança da ONU. A França, tradicional defensora da causa arménia, somou mais uma derrota geopolítica contra a Turquia. A UE acobertou-se na sua irrelevância. Esta semana entrou em funcionamento o Trans Adriatic Pipeline, que liga o Azerbaijão ao sul da Itália. Supostamente, o TAP contribuiria para a menor dependência energética da UE em relação à Rússia. Ao dar a vitória a Baku, tendo deixado cair a Arménia, Putin reforçou sobremaneira aquela dependência.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990