Não há vida fora da internet. Numa época em que poucas realidades escapam à atenção do legislador (lusitano, europeu, mundial…), a internet consegue viver à margem da lei. Muitos são os que consideram que qualquer tentativa de regulação efectiva será a antecâmara da morte da internet. A “net” seria um animal selvagem e feliz, avesso a qualquer tentativa de domesticação, finando-se se ameaçado pela possibilidade de cativeiro.
Os apóstolos da bondade intrínseca da net não confundem a coisa em si com os respectivos utilizadores, estes passíveis de classificação como bons e maus. Para os utilizadores da net há a lei, desde logo a penal. Se a lei vigente não basta, não faltam as almas generosas prontas a legislar pro bono.
Os problemas da net resultam da acumulação de mais-valia feita por alguns. A net é livre, mas tem dono. Os donos da net são os que acumulam os dados pessoais dos utilizadores (nós, o povo) e gerem a atenção dispensada à net. Vendem acesso à atenção dos utilizadores e traficam os dados que resultam do acesso. A circulação na net (diferente do acesso à plataforma tecnológica de comunicação) é “livre” e monetariamente gratuita. Quando nos dizem que um serviço é gratuito, duas coisas são certas: estamos a pagá-lo e não sabemos qual o preço. O negócio é chorudo e não pára de crescer.
A net seria a sociedade perfeita, permitiria o triunfo da liberdade, manteria longe o Estado e os respectivos mecanismos de regulação, vigilância e punição. O que se passa na net estaria à vista de todos, poderia ser “controlado” por todos, dispensaria o Estado e os seus horrores. Libertários de todo o mundo, uni-vos na net!
A economia dos dados continua pujante, mas os indivíduos ganharam alguma capacidade de reacção contra os tratamentos abusivos de dados pessoais – mérito da União Europeia e do Regulamento Geral de Protecção de Dados, que se tornou rapidamente o standard mundial de protecção.
Mais difícil é controlar a espiral de acumulação de capital e de tecnologia. As grandes empresas da net devoram sistematicamente as mais inovadoras. Tal não se traduz na generalização das soluções inovadoras e reduz drasticamente a possibilidade de concorrência. O fenómeno é conhecido e levou, nos liberais EUA, à desmontagem da Standard Oil e da Bell, os equivalentes petrolífero e telefónico da Google. Na passada semana, o Department of Justice (DoJ) desencadeou, ao abrigo do Sherman Act, uma acção judicial contra a Google, acusando-a de manter actividades monopolísticas e peticionando um structural relief que deverá corresponder ao fatiar do conglomerado.
Mais difícil é a gestão do que se escreve, se diz e se faz na net. Desde logo porque a legislação dos EUA em matéria de comunicações assegura aos donos da internet um privilégio de que não beneficia este jornal: “No provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider”. Os donos da net são, aos olhos do legislador, os donos das canalizações por onde circula o veneno que pode matar, mas não podem ser responsabilizados pelas mortes por envenenamento.
O DoJ não concorda e, em Setembro, apresentou uma proposta com alterações legislativas que responsabilizam os donos da net pela promoção do terrorismo, extremismo violento, pedofilia e outros crimes federais.
O mundo fica a aguardar a decisão do Congresso dos EUA. Se tardar, poderemos sempre confiar na futura presidência portuguesa do Conselho da União Europeia para se interessar pelo tema.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990