A maioria dos municípios portugueses continuam a não ter disponíveis os dados diários sobre a evolução da pandemia de covid-19 a nível local, o que impede que responsáveis e população tenham pleno conhecimento do número de casos ativos (e respetivas e potenciais cadeias de transmissão), em determinado momento, por concelho e até mesmo por freguesia.
A opção da Direção-Geral da Saúde (DGS) – que escolhe apresentar os números diários da pandemia apenas por regiões – tem mesmo vindo a ser identificada, por muitos autarcas (através de comunicados e declarações à comunicação social), como uma das maiores dificuldades no combate à propagação da doença.
Recorde-se que a DGS passou a omitir os números referentes à evolução da doença por concelho – justificando-se, na altura da decisão, com discrepâncias nos dados anunciados pelas diversas entidades nacionais e locais –, mantendo, neste momento, apenas a divulgação do seu boletim diário como única fonte de informação oficial sobre a covid-19 em Portugal. Aliás, ainda em meados de abril, o Ministério da Saúde chegou mesmo a tentar impedir legalmente que as estruturas autárquicas e as instituições locais divulgassem quaisquer dados sobre a doença, uma proibição que, porém, não chegou sequer a ser cumprida por vários municípios. A situação motivou à época duras críticas dirigidas ao Governo e à DGS pelos autarcas – como foi exemplo a reação contundente do presidente da Câmara de Espinho, Joaquim Pinto Moreira, que chegou a falar de uma alegada “instauração da lei da rolha por parte do Ministério da Saúde”, apontando o dedo à ministra da Saúde, Marta Temido.
Crítico das opções do Governo nesta matéria desde a primeira hora tem sido também o presidente da Câmara de Ovar, Salvador Malheiro. Ao i, o líder de um dos municípios mais afetados pela doença – e que logo em março enfrentou a imposição de uma cerca sanitária a todo o concelho – admite que “muitos colegas continuam, ainda hoje, a não terem acesso aos números da covid-19 nos seus próprios municípios”. Salvador Malheiro alerta para a situação, uma vez que continua a considerar que “só com todos estes dados disponíveis será possível aos autarcas atuarem da forma mais correta e tomarem as melhores decisões para as suas populações”. “Resumindo, só assim seremos capazes de enfrentar o momento que atravessamos, tornando-nos verdadeiros parceiros para a saúde pública local e nacional”, afirma o presidente ovarense.
Municípios publicam dados Ao contrário do que tem acontecido com a maioria, existem outros municípios que continuam a ignorar as cautelas da DGS. Além de Ovar, também Sintra, Mafra ou Batalha, entre outros, encontraram nas suas plataformas digitais o veículo para informarem diariamente as respetivas populações da evolução da doença em cada concelho e freguesia, segundo os dados disponibilizados pelas autoridades locais de saúde.
Uma “ferramenta” fundamental, na ótica de Salvador Malheiro, que considera que as câmaras municipais já assumiram, nesta crise, um papel que não era, à partida, de todo expetável: “Fomos para além daquilo que seriam as competências das câmaras municipais, pois sentimos, a partir de determinado momento, que do lado do Governo e da tutela já não existia capacidade operacional para dar conta do problema. E, portanto, criámos, logo a partir de março, uma série de ferramentas, juntamente com a autoridade local de saúde, que permitiram enfrentar esta crise da melhor maneira”, explica.
Mas, apesar desta posição, Salvador Malheiro não deixa de lamentar a posição do Governo, que considera continuar a não reconhecer o trabalho feito pelos autarcas portugueses, procurando mesmo “esvaziar” as funções que poderiam cumprir neste contexto pandémico: “Sou apologista de que o Ministério da Saúde deveria olhar para os autarcas como verdadeiros parceiros na gestão da pandemia, pois existem situações específicas dos próprios territórios que só os autarcas podem e sabem identificar. Existem, por exemplo, diferenças entre os infetados que se encontram em contexto urbano vulnerável ou aqueles que, por outro lado, estão infetados mas residem numa moradia, completamente isolados. E são precisamente os autarcas que têm esse conhecimento, que conhecem a distribuição dos infetados por freguesia e por todo o território”.
Segundo Malheiro, “o Governo deveria ter aproveitado estes últimos sete meses para preparar bem a segunda vaga”. “E se tivesse havido uma melhor ligação e coordenação entre as autoridades nacionais e os autarcas, tenho a certeza absoluta de que, neste momento, estaríamos bem melhor do que aquilo que estamos”, defende.
Por tudo isto, Salvador Malheiro é perentório na forma como coloca um ponto final nesta questão: “Defendo que os autarcas tenham acesso em tempo real àquilo que se está a passar nos seus municípios no que diz respeito a casos novos, mas também em relação ao número de recuperados, às idades dos infetados e ao extrato social a que pertencem”. “Só desta forma será possível às câmaras municipais poderem ajudar na gestão da pandemia”.
O caso de Ovar “Desde o início, sempre considerei que era de elementar justiça a população de Ovar estar informada sobre a evolução da pandemia. E, portanto, foi nesse contexto que sempre informei os munícipes de todos os números, diariamente e em tempo real”, diz Salvador Malheiro.
Neste momento, a Câmara de Ovar tem acesso a todos os dados das autoridades locais de saúde, o que permite conhecer com certezas o número total de casos ativos. Mas há mais: “Eu, por exemplo, tenho acesso à localização dos infetados, às suas idades e à evolução da doença de cada pessoa, e mesmo ao extrato social de cada um dos infetados”, diz o presidente da autarquia. Salvador Malheiro acrescenta que este conjunto de dados permite ter uma gestão do processo diferente. “Em março e abril chegámos a ter 540 casos ativos no concelho de Ovar, quando em Portugal havia só o registo de 25 mil casos ativos. Hoje existe o registo de 50 mil casos ativos no país e aqui, em Ovar, temos apenas 140 casos ativos (ou seja, conseguimos uma redução que é de cerca de 70%). E isso só foi possível porque tínhamos ao nosso dispor os dados que nos permitiram tomar decisões e opções certas. Hoje podemos concluir que, apesar de termos tido um incremento de casos nos últimos dias [o que levou Salvador Malheiro a decidir decretar, ontem, o estado municipal de emergência], estamos longe da situação complicada que vivemos quando a pandemia aqui chegou e mesmo daquela que se vive agora no resto do país”, refere.
Salvador Malheiro justifica o estado municipal de emergência como “uma forma de atuar preventivamente”. “Estamos precisamente a fazer aquilo que está a faltar na maior parte do país. Aqui, com os dados disponíveis, conhecemos os elos de contágio. Não há nenhuma medida que fique por fazer – e é por isso que temos a situação cada vez mais controlada em Ovar”, conclui.