A «frugalidade» dos offshores


“É uma forma dos mercados funcionarem sem a nefasta intervenção do Estado, de aumentar a eficiência da actividade económica pela existência da concorrência fiscal entre os países”


1. Quando houve a decisão inédita do Conselho da União Europeia que acedeu a enfrentar a pandemia com doações de determinados montantes procuramos encontrar uma justificação objectiva para a difícil posição dos países designados como «frugais», tomando como exemplo a Holanda. As conclusões quantificadas estão numa crónica noutro jornal1, que podemos resumir da seguinte forma:

a) Considerando o baixo nível de corrupção poítica2existente naquele país e os elevados níveis estimados em alguns dos países da União, a posição da Holanda é perfeitamente justificável (independente de qualquer valoração que façamos da presente pandemia e das necessidade de apoio financeiro)

b) Tomando como referência o facto daquele país ser um paraíso fiscal e judiciário e o facto de muitas importantes empresas portuguesas pagarem os seus impostos (parcos) naquele país, pelo facto de nos roubar (pois é esta a palavra a empregar) uma parte das receitas fiscais, não há qualquer razão para a posição assumida.

Partindo desta conclusão objectiva, aproveitando o importante documento recentemente publicado pelo OBEGEF3 (inteiramente à disposição de cada um dos leitores, de forma totalmente gratuita4) sobre o facto de “as empresas multinacionais” serem “hoje obrigadas a entregar junto das autoridades tributárias um relatório anual (conhecido por “Country-by-country Report”, CbCR) com informação fiscal desagregada país por país por forma a evidenciar onde são distribuídos os ativos e os trabalhadores e onde são declarados os lucros e pagos os impostos”, mais uma vez vamos centrar a nossa atenção no facto da Holanda ser uma parte da rede internacional de paraísos fiscais.

2. Muitos são os argumentos a favor da existência dos offshores para além da simples indisponibilidade das grandes empresas, sobretudo multinacionais, e fundos vários vivendo da apropriação da riqueza alheia, de pagarem impostos. Tudo tem a ver com a concorrência: “é uma forma dos mercados funcionarem sem a nefasta intervenção do Estado, de aumentar a eficiência da actividade económica pela existência da concorrência fiscal entre os países; porque é o garante da privacidade e da propriedade porque aumenta o investimento e o emprego”5.

Belos argumentos que se baseiam no que costumamos designar por «neofideísmo dos mercados», jogando esses argumentos mais com as palavras do que com a realidade:

  • Uma coisa é a apropriação do rendimento, outra, muito diferente, é a sua criação;
  • O Estado não é uma realidade exterior à economia e ao funcionamento dos mercados mas sua parte de pleno direito. A sua acção na actividade económica resulta do próprio funcionamento do capitalismo. Assim, por exemplo, o que permite a reprodução quotidiana da força de trabalho (além do mais, com remunerações tão baixas) é a existência de serviços públicos.
  • Uma coisa é a concorrência na actividade económica outra totalmente diferente é a existente entre os países (a tal «nefasta intervenção do Estado») pela apropriação das receitas fiscais.
  • Toda e qualquer diminuição do pagamento dos impostos pelas grandes empresas é um aumento do pagamento destes pelas pequenas e médias empresas e pela generalidade dos cidadãos.
  • Enfim, manda quem tem poder e o aumenta, agravam-se as desigualdades sociais e os que, em capitalismo estão abaixo do limiar da pobreza; aumenta o número dos que morrem de fome!

Mais, se tal é gravoso à escala mundial muito mais o é no âmbito de uma organização que nasce sob os auspícios da cooperação e da interajuda: “A missão da Comunidade, ao estabelecer um mercado comum e aproximando gradualmente as políticas económicas dos Estados-Membros, é promover o desenvolvimento harmonioso das actividades económicas em toda a Comunidade e uma expansão contínua e equilibrada, maior estabilidade, um aumento acelerado dos padrões de vida e relações mais estreitas entre os Estados que reúne.”6.

3. Retomando o importante documento inicialmente referido, o seu particular interesse resulta da objectividade e preocupação de quantificação.

É certo que esses relatórios (CbCR) podem ser objecto da contabilidade criativa das empresas e das possíveis falsificações resultantes das manipulações da realidade que a rede de paraísos fiscais permite (como, por exemplo, manipulação dos preços de transferência, falsas identidades, testas de ferro, ausência de regulação e fiscalização, bancos sombra, etc.), tanto mais que esses relatórios “não são divulgados publicamente”, mas há dois aspectos que chamam a atenção:

  • “A aplicação de um imposto unitário realizada de acordo com a proposta da Comissão Europeia e aplicada às 210 empresas multinacionais que operam em Portugal, significaria um acréscimo de receita fiscal da ordem dos 220 milhões de euros anuais.”
  • Considerando as empresas multinacionais dos EUA actuando na União Europeia, tal poderia significar um ganho da massa tributável para Portugal de cerca de 1100 milhões de dólares. Em contrapartida três países seriam campeões na perda de massa tributável (Holanda, Luxemburgo e Irlanda) no total de 60 mil milhões.

4. Uma curiosidade: nem a Holanda, nem Luxemburgo nem a Irlanda são para Portugal paraísos fiscais.

Como diz o ditado popular, como é que quem tem telhados de vidro pode mandar pedras aos telhados dos outros?

Notas

1. No Expresso online

2. Segundo o estudo “Os custos da corrupção na União Europeia” (The costs of corruption across de UE) elaborado pelo “Greensafe in the European Parlament, Belgica” em Dezembro de 2018.

3. Viegas, Miguel & Dias, António; A Declaração por País e a oportunidade de um imposto Unitário. Working Paper #64; Húmus & OBEGEF.

4.Abrir http://www.gestaodefraude.eu (ou http://www.obegef.pt), No menu escolher [Publicações] / [Working Papers].

5. Ver Pimenta, C. (2018). Os offshores do nosso quotidiano. Coimbra: Almedina.

6. Inicio do Tratado de Roma, documento fundamental da CEE

 

A «frugalidade» dos offshores


“É uma forma dos mercados funcionarem sem a nefasta intervenção do Estado, de aumentar a eficiência da actividade económica pela existência da concorrência fiscal entre os países”


1. Quando houve a decisão inédita do Conselho da União Europeia que acedeu a enfrentar a pandemia com doações de determinados montantes procuramos encontrar uma justificação objectiva para a difícil posição dos países designados como «frugais», tomando como exemplo a Holanda. As conclusões quantificadas estão numa crónica noutro jornal1, que podemos resumir da seguinte forma:

a) Considerando o baixo nível de corrupção poítica2existente naquele país e os elevados níveis estimados em alguns dos países da União, a posição da Holanda é perfeitamente justificável (independente de qualquer valoração que façamos da presente pandemia e das necessidade de apoio financeiro)

b) Tomando como referência o facto daquele país ser um paraíso fiscal e judiciário e o facto de muitas importantes empresas portuguesas pagarem os seus impostos (parcos) naquele país, pelo facto de nos roubar (pois é esta a palavra a empregar) uma parte das receitas fiscais, não há qualquer razão para a posição assumida.

Partindo desta conclusão objectiva, aproveitando o importante documento recentemente publicado pelo OBEGEF3 (inteiramente à disposição de cada um dos leitores, de forma totalmente gratuita4) sobre o facto de “as empresas multinacionais” serem “hoje obrigadas a entregar junto das autoridades tributárias um relatório anual (conhecido por “Country-by-country Report”, CbCR) com informação fiscal desagregada país por país por forma a evidenciar onde são distribuídos os ativos e os trabalhadores e onde são declarados os lucros e pagos os impostos”, mais uma vez vamos centrar a nossa atenção no facto da Holanda ser uma parte da rede internacional de paraísos fiscais.

2. Muitos são os argumentos a favor da existência dos offshores para além da simples indisponibilidade das grandes empresas, sobretudo multinacionais, e fundos vários vivendo da apropriação da riqueza alheia, de pagarem impostos. Tudo tem a ver com a concorrência: “é uma forma dos mercados funcionarem sem a nefasta intervenção do Estado, de aumentar a eficiência da actividade económica pela existência da concorrência fiscal entre os países; porque é o garante da privacidade e da propriedade porque aumenta o investimento e o emprego”5.

Belos argumentos que se baseiam no que costumamos designar por «neofideísmo dos mercados», jogando esses argumentos mais com as palavras do que com a realidade:

  • Uma coisa é a apropriação do rendimento, outra, muito diferente, é a sua criação;
  • O Estado não é uma realidade exterior à economia e ao funcionamento dos mercados mas sua parte de pleno direito. A sua acção na actividade económica resulta do próprio funcionamento do capitalismo. Assim, por exemplo, o que permite a reprodução quotidiana da força de trabalho (além do mais, com remunerações tão baixas) é a existência de serviços públicos.
  • Uma coisa é a concorrência na actividade económica outra totalmente diferente é a existente entre os países (a tal «nefasta intervenção do Estado») pela apropriação das receitas fiscais.
  • Toda e qualquer diminuição do pagamento dos impostos pelas grandes empresas é um aumento do pagamento destes pelas pequenas e médias empresas e pela generalidade dos cidadãos.
  • Enfim, manda quem tem poder e o aumenta, agravam-se as desigualdades sociais e os que, em capitalismo estão abaixo do limiar da pobreza; aumenta o número dos que morrem de fome!

Mais, se tal é gravoso à escala mundial muito mais o é no âmbito de uma organização que nasce sob os auspícios da cooperação e da interajuda: “A missão da Comunidade, ao estabelecer um mercado comum e aproximando gradualmente as políticas económicas dos Estados-Membros, é promover o desenvolvimento harmonioso das actividades económicas em toda a Comunidade e uma expansão contínua e equilibrada, maior estabilidade, um aumento acelerado dos padrões de vida e relações mais estreitas entre os Estados que reúne.”6.

3. Retomando o importante documento inicialmente referido, o seu particular interesse resulta da objectividade e preocupação de quantificação.

É certo que esses relatórios (CbCR) podem ser objecto da contabilidade criativa das empresas e das possíveis falsificações resultantes das manipulações da realidade que a rede de paraísos fiscais permite (como, por exemplo, manipulação dos preços de transferência, falsas identidades, testas de ferro, ausência de regulação e fiscalização, bancos sombra, etc.), tanto mais que esses relatórios “não são divulgados publicamente”, mas há dois aspectos que chamam a atenção:

  • “A aplicação de um imposto unitário realizada de acordo com a proposta da Comissão Europeia e aplicada às 210 empresas multinacionais que operam em Portugal, significaria um acréscimo de receita fiscal da ordem dos 220 milhões de euros anuais.”
  • Considerando as empresas multinacionais dos EUA actuando na União Europeia, tal poderia significar um ganho da massa tributável para Portugal de cerca de 1100 milhões de dólares. Em contrapartida três países seriam campeões na perda de massa tributável (Holanda, Luxemburgo e Irlanda) no total de 60 mil milhões.

4. Uma curiosidade: nem a Holanda, nem Luxemburgo nem a Irlanda são para Portugal paraísos fiscais.

Como diz o ditado popular, como é que quem tem telhados de vidro pode mandar pedras aos telhados dos outros?

Notas

1. No Expresso online

2. Segundo o estudo “Os custos da corrupção na União Europeia” (The costs of corruption across de UE) elaborado pelo “Greensafe in the European Parlament, Belgica” em Dezembro de 2018.

3. Viegas, Miguel & Dias, António; A Declaração por País e a oportunidade de um imposto Unitário. Working Paper #64; Húmus & OBEGEF.

4.Abrir http://www.gestaodefraude.eu (ou http://www.obegef.pt), No menu escolher [Publicações] / [Working Papers].

5. Ver Pimenta, C. (2018). Os offshores do nosso quotidiano. Coimbra: Almedina.

6. Inicio do Tratado de Roma, documento fundamental da CEE