O precedente no Supreme Court


Não obstante a pandemia, os Republicanos aceleram a confirmação de Amy Coney Barrett pelo Senado.


Uma das razões do sucesso da Constituição dos EUA, e provavelmente uma das mais importantes, será a sua concisão. Soma 7 artigos e 27 emendas, sendo que as 10 primeiras – o Bill of Rights – foram quase contemporâneas do texto original. As emendas, que correspondem às lusitanas revisões constitucionais, não são frequentes, dada a dificuldade em conseguir a ratificação pelos Estados Federados (algo que a União Europeia, sem o mesmo grau de integração, descobriu de forma dolorosa).

Sendo curta e antiga (1787) a Constituição americana vive da interpretação por via judicial que avalia da conformidade dos actos legislativos federais e dos Estados Federados. Esta possibilidade foi decidida, em causa própria, pelo Supreme Court logo em 1803, no caso Marbury v. Madison. A conjugação deste poder de judicial review com o regime do precedente tradicional nos sistemas jurídicos que seguem a matriz anglo-saxónica empresta às decisões do Supreme Court uma importância decisiva. O stare decisis opera verticalmente, obrigando os restantes tribunais, conferindo estabilidade e previsibilidade à interpretação feita pelo Supreme Court (poupando o sistema judicial à reapreciação de casos semelhantes) e criando expectativas junto dos operadores jurídicos (desde logo as pessoas singulares e colectivas que investem a sua confiança nos precedentes jurisprudenciais).

O stare decisis também opera horizontalmente, vinculando o Supreme Court. No entanto, esta vinculação não é eterna, cedendo perante uma nova maioria (pelo menos 5 juízes) que se afastem – espera-se que com uma fundamentação convincente – de um anterior precedente. A revogação (“overrule”) de um precedente mantendo-se a norma ou o princípio constitucional que o fundamentou não é frequente mas já aconteceu o número suficiente de vezes para termos a certeza de que voltará a acontecer.

Nada na Constituição americana proíbe expressamente o precedente como também não proíbe a sua auto-revogação. Já em Portugal o Tribunal Constitucional tem a liberdade cerceada pelo nº 1 do artigo 282º da Constituição, cuja boa interpretação o obriga a sujeitar-se aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, mesmo depois da chegada de novos juízes.

Os adeptos da natureza evolutiva da Constituição (“Living Constitution”) convivem facilmente com situações de revogação do precedente. Já os apóstolos do “originalismo”, visitados por esta crónica na semana passada, correm o risco de querer revogar todos os precedentes que não coincidam com o literalismo do texto constitucional escrito tal como interpretado à luz da vontade dos constituintes de 1787. Os originalistas acabam a defender uma “constituição no exílio” que aguarda pela chegada de uma maioria libertadora ao Supreme Court.

A recém nomeada juíza Barrett, assumidamente “originalista”, identificou em vários artigos doutrinários um conjunto de excepções à teoria originalista, os casos em que o texto da constituição e a vontade do constituinte teriam sido revogados pela consistência do precedente (e, acrescento eu, pela realidade): a proibição do uso de papel moeda, os poderes do Estado Federal com o New Deal, a aplicação do Bill of Rights aos Estados Federados, a proibição da discriminação com base na raça e no género seriam “super-precedentes”. Desta lista não consta, “porque ferozmente contestada”, a decisão Roe v. Wade reconhecendo o direito à interrupção voluntária da gravidez.

Segundo a juíza Barrett há (super)precedentes mais iguais do que outros. To be continued.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990