Durante o confinamento, e na ausência de jogos de futebol com o resultado em aberto, tivemos direito a rever, por via televisiva, muitas partidas conhecidas e outras também não, num alargar ao sinal aberto e à cor das propostas desportivas da RTP Memória. O revisitar de resultados eleitorais serve com igual favor os preliminares, enquanto não chegam os resultados da eleição agendada para 3 de Novembro.
O sistema eleitoral para a escolha do Presidente dos EUA contraria vários adquiridos civilizacionais hoje comuns fora da matriz política anglo-saxónica. A aplicação do princípio maioritário na conversão dos votos em mandatos dos “grandes eleitores” que escolhem o Presidente reduz a fé no princípio “um homem, um voto”. Na maior parte dos estados federados, o candidato com mais votos obtém todos os mandatos dos grandes eleitores, sendo necessários 270 destes para eleger o Presidente. O elemento proporcional do sistema, presente na distribuição dos grandes eleitores por cada Estado, também sofre entorses várias, discriminando positivamente os estados com menor população em nome do federalismo. No limite, o Presidente eleito pelos “grandes eleitores” pode receber menos votos dos eleitores (Gore em 2000, Hillary em 2016).
Uma segunda ordem de dificuldades resulta da autonomia dos estados federados na definição das regras relativas ao processo eleitoral, incluindo os mecanismos de voto. Estes podem incluir o boletim de papel com voto em urna ou várias geringonças mecânicas e electrónicas que o substituam no todo ou em parte. O recenseamento eleitoral, a fiscalização da votação, os mecanismos de recontagem de votos e a possibilidade de tutela jurisdicional são também cometidos aos estados.
A diversidade de regras eleitorais nos diversos estados e a importância da escolha do Presidente fazem com que o contencioso eleitoral adquira uma dimensão federal, com a solução de litígios a ser cometida, em última instância, ao Supremo Tribunal.
Nas eleições de 2000, e face ao mau funcionamento de várias maquinetas empregadas para descarregar os votos na Florida, a campanha de Gore solicitou a recontagem manual em quatro condados, por sinal tradicionalmente ganhos pelos democratas. Bush opôs-se à recontagem por estarem a ser empregados métodos diferentes nos diversos condados. O Supremo Tribunal, numa decisão por 5-4, deu-lhe razão. Já a minoria, dissenting, defendeu a continuação da recontagem.
Os 25 grandes eleitores da Florida foram – pelo sistema maioritário – atribuídos a George W. Bush, que com eles somou 271 e assim se tornou o 43.o Presidente, derrotando Gore, que se quedou pelos 266.
Vinte anos volvidos, com a multiplicação de ingerências russas, iranianas e chinesas no processo eleitoral, a recente qualificação como crime federal do “hacking eleitoral”, um Presidente em funções que diaboliza o voto por correspondência e anuncia a resistência a uma futura derrota, a noite eleitoral de 3 de Novembro arrisca-se a durar muitas semanas.
A judicialização do processo eleitoral é, sobretudo nos EUA, inevitável. Mas não deixa de ser perigosa. Na próxima decisão do Supremo Tribunal sobre o assunto, a futura maioria, que imagino conservadora, corre o risco de vir a parafrasear a decisão da minoria (“liberal”, como sói escrever-se na América) vencida em 2000 (redigida por Breyer, com o apoio de Stevens, Ginsburg e Souter): “And, above all, in this highly politicized matter, the appearance of a split decision runs the risk of undermining the public’s confidence in the Court itself”.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990