Está a desenrolar-se um caso que mostra bem como estamos mal, muito mal, em matéria de representatividade parlamentar. A cidadania não está representada na Assembleia.
A liberdade de educação é uma das liberdades fundamentais, um direito humano inapagável. É consagrada em todas as declarações internacionais de direitos humanos (no que nos interessa, Nações Unidas, Conselho da Europa e União Europeia) e na generalidade das Constituições com regime democrático e Estado de direito. A nossa, de 1976, é um exemplo.
A liberdade de educação cobre diversos aspectos, da liberdade de consciência ao primado dos pais e mães na educação dos filhos. A liberdade de consciência pesa duplamente: por um lado, vale por si mesma, sendo uma das liberdades fundamentais de qualquer cidadão na vida pública e privada; por outro, a liberdade de consciência é matricial da liberdade de educação – a escola não pode impor a qualquer educando aprendizagens morais, cívicas, filosóficas, religiosas que sejam contrárias à sua consciência ou, sendo menor, de seus pais; outrossim, os pais e as mães têm o direito de escolher livremente a educação dos filhos. Por isso, as declarações de direitos humanos acrescentam que, na educação, o primado é dos pais e mães – a nossa Constituição, também. Na educação, mesmo na escola pública – corrijo: sobretudo na escola pública –, o “patrão” não é o Estado, o ministro, etc., nem são os professores ou seus sindicatos. O “patrão”, no essencial mais sensível na educação dos filhos, são os pais. Não interferem nas matérias técnicas e científicas dos conteúdos do ensino, mas têm palavra decisiva em tudo o que se prende com os seus valores e princípios e em que educam os filhos. O Estado não pode usar a escola para doutrinar as crianças em convicções ideológicas, políticas, sociais, filosóficas, morais, religiosas, sugerindo-lhes ou impondo-lhes determinadas linhas ou opções. Isto já seria decorrência suficiente dos princípios mencionados. Mas, para não haver dúvidas, a Constituição estipula-o expressamente: “O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”. Clarinho! É fácil de entender porquê: se não fosse assim, destruía-se quer a liberdade de consciência, quer o primado dos pais na educação dos filhos.
Estes elementos são direitos humanos. Repito: direitos humanos. Mais uma vez: direitos humanos. Em Portugal, são garantias constitucionais. Se aplicadas, Portugal cumpre estas garantias. Se feitos respeitar, a sociedade é de direitos humanos. Infelizmente, o que sucede é que, graças à acção perversa do Ministério da Educação, Portugal não cumpre aquelas garantias constitucionais e está a deixar de ser, na educação, uma sociedade plena de direitos humanos.
O caso, conhecido, é muito grave. Terminou com duas crianças reprovadas por dois anos – onde já se viu uma coisa destas?! – por ordem do secretário de Estado. Na origem esteve o exercício da objecção de consciência quanto à disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento” por parte da mãe e do pai dos alunos. Gerou-se conflito devido à intolerância inconstitucional do ministério. A intolerância foi subindo de tom, com repetidas tentativas de intimidação sobre as crianças e os pais, até chegar àquele desenlace esquizofrénico. O conselho de turma deu passagem de ano aos dois alunos. Mas o ministério, qual algoz furibundo, caiu sobre a escola e o conselho de turma, arrasando pedagogia, autonomia e liberdade.
O ministério não alvejou só as crianças e a escola. Começara pela ideia de acoimar os pais, punindo-os financeiramente pela ousadia. Mas concluiu não haver contraordenação, para desapontamento dos perseguidores, que sugerem ao legislador “corrigir o problema”. E chegou à atemorização dos professores com sanções disciplinares, ao ponto de, apesar de se verificar que a eventual responsabilidade estaria prescrita, a informação aprovada pelo secretário de Estado ainda brande a ameaça e mantém-na a saltitar.
A disciplina de “Cidadania” tem sido fonte de atritos desde que passou a obrigatória, em 2018. O caso de Famalicão não é único, mas é o mais significativo. Mostra que o ministério não cumpre nem a Constituição nem a lei, querendo forçar e impor o que não pode nem deve. Se o ministério se ativesse à posição de serviço público geral e não cedesse aos que querem instrumentalizá-lo como mentor ideológico, os conflitos não aconteceriam. Se o ministério ouvir os pais, em vez de querer intimidá-los; se tiver em conta a sua sensibilidade, em lugar de os querer “reeducar”; se tiver humildade, em vez de cagança, prosápia e arrogância; se habilitar as escolas a fazerem este diálogo no quadro próximo de cada comunidade, em vez de se impor, autocrático, por cima das escolas, vistas como filiais do ministério – estes problemas não surgirão. Abstendo-se de “ensinar” questões que enchem debates acesos na política e na sociedade, a escola protege-se. A escola não é partido nem seita. É educação, não propaganda.
A Assembleia da República parece em silêncio quanto ao lado da liberdade de educação e dos direitos dos pais – direitos humanos, sublinho. Em 230 deputados, não há um que assuma a defesa séria, competente, efectiva desta causa maior. Parece que os portugueses que prezam as liberdades da educação – e são milhões – não têm representação em São Bento. Esperava-se acção vigorosa do PSD e do CDS. Nada! Esperar-se-ia que o PS humanista, honrando Sottomayor Cardia, levantasse também a voz. Nada, com a excepção de Sérgio Sousa Pinto.
Um deputado do PSD, Duarte Marques, questionou o Governo sobre a reprovação das duas crianças. Muito bem. O secretário de Estado driblou a questão, dizendo que “o Ministério da Educação não tem competência para chumbar alunos” (o que é verdade, mas esmerou-se em fintar) e continuou por jogos de palavras para negar a evidência: o chumbo das crianças por dois anos foi a execução de despacho seu. Contou por certo que o processo administrativo não fosse conhecido do deputado e que ninguém o contraditasse. Calculou bem: ainda não houve contradita a desmascarar a falsidade. Se fosse no Congresso dos Estados Unidos ou num Parlamento vibrante, passaria um muito mau bocado. Poderia ter de demitir-se ali mesmo. Não há falta mais grave do que, em pleno exercício da fiscalização política do Governo, mentir com descaramento.
A liberdade de educação é uma liberdade fundamental em perigo. Tem de haver quem a defenda com vigor. Foi anunciada agora uma proposta do CDS e já tinha havido uma iniciativa do Chega. Há, como sabemos, muita gente preocupada com o Chega – e há motivo para isso. Mas a oportunidade do Chega resulta de governantes como o secretário de Estado João Costa. O actual Ministério da Educação é dos maiores fautores de apoiantes do Chega. Parece que, em gesto de agradecimento, ouve-se já: “Costa amigo, o Chega está contigo”. O primeiro-ministro, que não ganha nada com esta linha intolerante do ministério, terá talvez de corrigir de cada vez que ouvir “Costa amigo, o Chega está contigo”: “Não sou eu, é o outro”.
O benefício do Chega resulta também da omissão, do silêncio e da tibieza do CDS e do PSD, em que as lideranças partidárias e parlamentares não falam nem agem com a clareza que se impõe. E os seus dirigentes e deputados parecem estar noutro país. Os cidadãos que estão indignados com esta questão querem ver nas arenas de representação política os seus representantes: políticos que falem com propriedade e com vigor, mostrando conhecimento e convicção, com a firmeza e o inconformismo de quem defende direitos humanos postos debaixo do camartelo do poder. Os eleitores, às vezes, não têm ilustração ou formação suficientes, mas sabem sempre entender o que se passa. Sabem ver quem sabe e quem não sabe, quem tem convicção e quem não tem, quem se interessa e quem não se interessa, quem está genuinamente preocupado e comprometido com a resposta a um problema ou quem não vai além do faz-de-conta – isto é, quem os representa ou não.
Este é um combate político para ganhar. Será que não há ninguém a sério na Assembleia? A defesa das liberdades da educação, direitos humanos cruciais, não tem mais de 1/230 avos do plenário de São Bento?
Advogado
Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990