A ingratidão como uma questão de ótica


Alguém pode não reconhecer o bem que lhe é feito porque não vê a coisa assim, mas como algo a que tem direito.


Se estudássemos mais a biologia e, nela, a fisiologia, talvez tivéssemos menos desgostos e, também, menor número de problemas e discussões de ordem moral. Digo-o – claro, já se nota – com uma pontinha de ironia (ou mesmo de sarcasmo, esse alívio para vapores e humores malignos – lá está, a biologia), mas só um pouco porque, realmente, a biologia pode explicar muito. Quase todos os pecados capitais, naturalmente, e muitos dos veniais, e dá uma melhor luz à afirmação, atribuída a Montaigne (mas podia ser de tanta gente, não?), de que o arrependimento é uma negação do nosso desejo e uma oposição às nossas fantasias. Mas não vou por aí, resistindo (quase como no poema de Régio se resiste ao cântico negro). Limito-me a umas palavrinhas sobre a ingratidão, que costuma ser apontada como falha moral. Não reconhecer o bem que é feito ou oferecido tende a ser tratado como um defeito ou, pelo menos, uma falta pontual, embora grave. Mas talvez seja exagero, e a biologia ajuda porque, muitas vezes, pode ser mero problema de ótica, e essa constatação pouparia desalento ou sofrimento. E até pode ser uma dupla falha de ótica, caso em que a coisa pode atingir – injustificadamente, claro, à luz da biologia – foros de dramatismo.

Alguém pode não reconhecer o bem que lhe é feito ou oferecido porque, simplesmente, não vê a coisa assim, mas como algo a que tem direito, que lhe é devido ou mesmo que é natural que lhe chegue. Pura questão de ótica. Se X me dá o que é meu, é justiça, o que não reclama gratidão. E esta perspetiva, esta cristalina questão de ótica tem muitos cultores (desde logo, o animal singelo que há em cada um de nós), que simplesmente veem as coisas como sendo naturalmente suas, donde os outros se limitam a estar em conformidade com a ordem natural, e se alguma coisa há que não esteja bem, não será por excesso, mas sim por defeito, porque o “bem” dado ou ofertado pode até ser pouco para o merecimento do recetor. Gratidão? Porquê? Tudo estará bem acabando bem, e quando muito uma pitada de reclamação, porque – na ordeira natureza da biologia – poderá até faltar algo, em vez de sobejar. Sobejar, nunca sobeja; no máximo chega, está bem, está certo.

É simples. Mas pode ter um problema se quem dá, faz ou oferece não vê assim. Questão de ótica – lá está, novamente a biologia. Sempre e só uma questão dessa ordem, nada de moral. Quem dá, faz ou oferece pode ver a coisa de outra maneira e esperar gratidão. Se a não tem, se a não recebe, não gosta, e o mundo não quadra com as suas lentes. E pior ainda – a tal falha dupla de ótica, mais dramática – se quem dá, faz ou oferece assim procede essencialmente à espera de gratidão. Caso em que vê mal duas vezes, logo, sofre mais. Vê mal ao não reconhecer que quem recebe apenas tem o que é seu por direito, definição ou natureza. E vê, depois, novamente mal porque não enxerga que o seu papel no mundo não é esperar gratidão, mas sim dar porque sim, ou então não dar. Trata-se, também neste caso, de concentração na biologia, não achando que o ser-com-os-outros se sobrepõe ao ser-pessoa (e bicho, fisiologicamente determinado). Nem sequer está antes ou à frente. Nada disso. Está atrás, sempre atrás, e às vezes nem está. Uma boa ótica, a perspetiva certa poderia poupar muito mal entendido, desencanto, sofrimento. Uns óculos, e bem ajustados e graduados, fazem muita falta. As falhas morais não são sempre filhas de uma incompreensão ou de uma subalternização da biologia? Que mania temos de complicar, que chatice essa coisa de, em vez de apenas estar, termos de ser-com-os-outros. Sem ironia (e muito menos sarcasmo), claro.

 

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