Se há alguém que tenha estado na linha da frente no combate a esta grave pandemia têm sido os profissionais de saúde, designadamente os médicos e os enfermeiros. Na verdade, desde o início desta crise que estes profissionais têm dado o máximo do seu esforço na defesa da saúde pública e no cuidado dos doentes infectados, expondo-se muitas vezes a risco para a sua própria vida. Na verdade, vários médicos e enfermeiros, depois de terem lutado pela melhoria da saúde dos seus doentes, acabaram eles próprios infectados, chegando alguns a ter de ser colocados em ventiladores e houve mesmo perdas de vidas a lamentar.
A reacção do poder político deveria ter sido, por isso, desde o início, uma atitude de enorme respeito pelo sacrifício pessoal dos profissionais de saúde neste combate colectivo e uma intensa colaboração com as suas entidades representativas, por forma a tomar conhecimento da situação existente no terreno e mitigar as dificuldades por que passam os médicos e enfermeiros no cuidado diário dos doentes afectados pela pandemia. Por isso, se a Ordem dos Médicos decide elaborar um relatório sobre uma situação com a gravidade da ocorrida em Reguengos de Monsaraz, é óbvio que esse relatório tem de ser valorizado e tomado em consideração pelo Governo, até para corrigir os graves casos de contaminação que todos os dias ocorrem nos lares portugueses, sem que seja apresentado qualquer plano para controlar esses surtos.
O Governo, porém, uma vez confrontado com as graves informações constantes desse relatório, optou em primeiro lugar por ignorá-lo e desvalorizar a situação. Foi assim que a ministra da Segurança Social afirmou ao Expresso nem sequer ter lido o relatório, tendo as suas declarações chocado o país, mesmo que, nessa altura, apenas as conclusões do relatório tivessem sido divulgadas. Quando o conteúdo do relatório foi sendo conhecido, o primeiro-ministro sentiu que tinha de defender pessoalmente a ministra, em quem reafirmou de imediato a sua confiança política. Como, no entanto, não era viável contestar a veracidade do relatório, optou antes por atacar a Ordem dos Médicos, no âmbito da velha estratégia de que, quando não se consegue desmentir uma notícia, a solução é passar para o ataque ao mensageiro.
Foi assim que o primeiro-ministro questionou, em primeiro lugar a competência legal da Ordem dos Médicos para elaborar o relatório, como se uma ordem profissional de médicos pudesse alguma vez num país democrático ser impedida de elaborar relatórios sobre falhas na prestação de cuidados médicos, seja qual for a instituição em que estas ocorram. Em seguida resolveu atacar os médicos num evento público de apoio às instituições particulares de solidariedade social. Nesse evento desvalorizou as falhas descobertas nos lares onde tantas vidas se perderam (“não é possível que não haja falhas”) e criticou as declarações dos titulares da Ordem dos Médicos sobre o lar de Reguengos (“é fácil ficar no nosso consultório e passar o dia a falar por videoconferência para as televisões, opinando sobre o que acontece aqui e ali”). Não é necessário sequer falar das declarações privadas do primeiro-ministro para confirmar o seu ataque aos médicos, uma vez que as suas declarações públicas confirmam claramente essa sua estratégia.
Mas, ao contrário do que refere o primeiro-ministro, os médicos não têm estado fechados nos seus consultórios a fazer declarações à televisão, têm estado nos hospitais a lutar por salvar as vidas das pessoas infectadas por esta gravíssima doença. Precisamente por isso, deveriam ter do poder político o reconhecimento que essa sua luta diária merece, como, aliás, outros países têm feito. No Reino Unido, o Governo homenageou no passado dia 28 de Abril os profissionais de saúde que foram vítimas da covid-19 e o primeiro-ministro Boris Johnson recebeu, no passado dia 5 de Julho, os profissionais que o trataram quando esteve hospitalizado em virtude dessa grave doença. Em Portugal, pelo contrário, o primeiro-ministro achava, no passado dia 17 de Junho, que ter a Liga dos Campeões em Lisboa é que era “um prémio aos profissionais de saúde” e agora preocupa-se em atacar a Ordem dos Médicos depois do que esta descobriu em Reguengos de Monsaraz. Espera-se que o país seja solidário com os médicos, pois são estes e a sua ordem que merecem a nossa solidariedade perante este ataque do Governo.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990