Portugal é um país de sobressaltos. É de brandos costumes, águas mornas na organização do modelo de desenvolvimento, e inquebrantáveis indignações gerais por revoadas quando ocorrem situações-limite. Foi assim na relação com os que exercem o poder, na trágica fustigação dos incêndios florestais, e agora, com a pandemia e com a letalidade associada aos cidadãos com maior experiência de vida, Portugal despertou para a realidade dos lares e afins. O país tem um problema demográfico sustentado há anos, nos nascimentos, mas também na forma como responde aos mais velhos. Porque as famílias não têm ritmos quotidianos e disponibilidades financeiras para os acolher, porque o Estado planeia mal os seus recursos e insistiu nas últimas décadas em plantar centros educativos novos nas freguesias quando estava na iminência de não ter crianças para os ocupar e porque a convergência de apoios para o funcionamento é insuficiente para assegurar respostas com padrões de qualidade que se exigiam. E depois há o ambiente geral de exigência. Todos exigem, mesmo os que, como a Ordem dos Médicos ou outras entidades, foram complacentes com os cortes de anos na saúde e na segurança social, a suspensão de construção/requalificação de equipamentos, a desatualização das comparticipações e tantas outras expressões de que a vontade geral não está ali, pelo menos até que haja tragédia.
É a mesma ordem que é contra o alargamento das vagas nos cursos de Medicina ou a ampliação do leque de instituições do ensino superior com formação na área. É a mesma, a par de alguns sindicatos, que foi complacente com a depauperação do Serviço Nacional de Saúde enquanto se acumulavam os passivos e se alterava o perfil da população a tratar, pelas doenças associadas à idade, aos estilos de vida e às novas realidades da vida moderna.
Quem agora se sobressalta em relação aos lares são, por regra, os mesmos que têm preconceitos em relação ao trabalho desenvolvido pela economia social, por ignorância ou por inveja, ou que preferiram dedicar as suas opções políticas dos últimos anos a outras áreas e grupos de interesse. É mais popular aumentar a função pública do que tratar da dignificação das respostas para a população sénior, seja na modelação dos equipamentos, na sustentabilidade das instituições ou na valorização do desempenho de funções nos equipamentos. A verdade é só uma: sem perda de qualidade e de humanismo, a gestão das instituições sociais, sobretudo das que recorreram ao programa PARES para melhorar as ofertas e em contexto rural, é um sufoco.
O Portugal dos sobressaltos pode resolver os problemas de consciência, servir para esgrimir argumentos na praça pública entre responsáveis públicos ou responder ao momento, mas não resolve nenhum problema estrutural. Porque as prioridades de circunstância não configuram nenhuma opção estrutural e estruturada para superar as situações concretas. Reguengos é tão-só a expressão de uma ausência de responsabilidade coletiva com os mais velhos. Porque não temos tempo. Porque não os temos como prioridade. Porque não são tão mediáticos como outros, com mais voz, poder e capacidade de influenciar as políticas de Estado.
Portugal é um país de emergências, que a tudo tipifica como prioritário, mesmo sem os adequados recursos para sustentar essa verve de ocasião. O atual quadro pandémico, com as implicações económicas e sociais, traduzir-se-á no agravamento dos problemas estruturais, como o da demografia e da resposta geriátrica ou, de forma mais lata, no papel dos velhos nas nossas comunidades e na emergência de novas realidades a precisar de respostas. E o dinheiro é escasso, como sempre foi, apesar de a mensagem política ter sido outra e dos comportamentos também. É escasso, e mesmo o prometido por Bruxelas demorará o seu caminho até chegar às pessoas e aos territórios.
Por estes dias de risco pandémico, o país está a descobrir-se a si próprio. A par de realidades como a dos lares, descobre novos pontos do território, interioriza que é possível fazer diferente cá dentro, no despertar de um orgulho no que temos que pode galvanizar-nos para fazermos mais e melhor. Há quem se sinta tocado pela realidade mediática e pela ocorrência de situações-limite para agir, finalmente. Pode ser que esta oportunidade que parte do país está a ter de se descobrir sirva para se ter outra consideração pelo interior, pela resiliência das suas gentes e pela relevância estratégica de ter um território menos desigual, na atenção e na ação concreta. Pode ser que o país que se descobre neste verão não continue a acordar tarde para a realidade. Pode ser, mas não é fácil.
Há todo um sistema instalado que espera pela primeira oportunidade para voltar às opções de sempre, aos interesses de sempre e com os protagonistas de sempre. É que, na casa onde não há pão, quem fala mais alto fica sempre com as migalhas e remete as prioridades de circunstância e os sobressaltos para o olimpo da próxima ocorrência.
Em tempo de preparação do futuro Orçamento do Estado, com nebulosas variantes que não controlamos nem imaginamos, é tempo de apurar as opções, de preparar a resposta para o que aí vem de risco pandémico, de crise económica e de devastação social. É preciso foco, sentido de rigor e capacidade de concretização, coisa que falta tanto ao Governo como à oposição. Mais do que nunca, era preciso um Governo além da gestão de turno, com gente para fazer e oposição para fiscalizar além do bitaite ou do óbvio. Pode ser que ao país que se descobre corresponda uma remodelação governamental com o foco na capacidade política de concretização com sentido de futuro, de coesão e de combate aos problemas estruturais. Era preciso um sobressalto consequente. Não será.
NOTAS FINAIS
Um pequeno passo para o homem. O comentador Marques Mendes sempre foi um homem de interesses. Defende agora o contrário do que praticou no tempo da política ativa, mas não perde a oportunidade de dar a mão aos amigos. Fazer o frete a Rui Gomes da Silva no processo eleitoral do SLB é poucochinho, mas serve de compensação por este ter abandonado Pedro Santana Lopes aquando da criação da Aliança. De caráter, estão bem um para o outro. Afinal, há alianças que perduram.
Um salto gigantesco para a humanidade. O desafio do regresso pós-verão e as notícias sobre as vacinas precisam de um quadro claro, rigoroso e eficaz de comunicação, para reforçar a confiança, desmistificar medos e não dar margem à desinformação e aos detratores.
Escreve à segunda-feira