Nicha Cabral. A última meta do piloto artístico

Nicha Cabral. A última meta do piloto artístico


Nicha Cabral foi o primeiro piloto português de Fórmula 1. Apaixonado pelas artes, sonhou com uma carreira de ator e terminou com 20 valores o curso de violino do Conservatório Nacional de Música.


Podia ter sido ator, músico ou até ginasta, mas as voltas da vida acabaram por entregar-lhe outro título, tornando-o o primeiro português a participar na Fórmula 1. Aos 86 anos, Mário de Araújo Cabral fez a última curva nesta corrida da vida, e deixa para sempre inscrito o seu nome na história do desporto automóvel português.

Filho de uma família abastada, nasceu em Cedofeita, no Porto, mas viria a mudar-se ainda jovem para Lisboa, com a mãe e os dois irmãos, após o divórcio dos pais. O desporto e as artes foram sempre dois pilares na vida de Nicha Cabral, como ficaria conhecido. Ainda antes de entrar no mundo automóvel, foi na ginástica que iniciou o seu percurso como atleta. Porém, em 1952 uma fractura num pé impediu-o de se tornar ginasta olímpico, obrigando-o a dar o salto para novos horizontes. Passaram sete anos até fazer história: em 1959, foi o primeiro português a participar em provas de Fórmula 1, após disputar o Grande Prémio de Portugal, em Monsanto, num Cooper-Maserati T51. Na sua corrida de estreia terminou em 10.º lugar, mas o resultado até podia ter sido melhor, como recordou mais tarde em entrevista ao i. “Acabei em 10.º lugar mas há uma história engraçada. Nas três últimas voltas, o Terry Brooks vem coladinho a mim. O meu carro já estava a falhar por todos os lados mas o dele falhava ainda mais. Ainda assim, fiz-lhe sinal para me passar porque julgava que ele estava à minha frente e ia dar-me uma volta de avanço. Ninguém das boxes dizia nada, estavam lá sentadinhos a ver a corrida, e eu pensava que o Ferrari do Brooks ia dobrar-me. Qual não é o meu espanto quando percebo no final da corrida que caí de 9.º para 10.º, através do Terry Brooks. Veio ter comigo a dizer-me ‘Mario, you’re fantastic, thank you’ e eu feito parvo a olhar para ele como quem diz ‘mas tu queres ver’. Ficámos sempre amigos a partir daí [risos]”, contou, em março de 2012, aos 78 anos.

Nesse Grande Prémio, conquistado pelo britânico Stirling Moss, houve ainda o caricato episódio entre Nicha Cabral e Jack Brabham. “Ele [Jack Brabham] estava a discutir o primeiro lugar com o Moss. Íamos na autoestrada a entrar em Monsanto, eu olhei por um dos retrovisores e vi o nariz do carro dele a aproximar-se. Pensei ‘olha, vai ultrapassar-me nesta recta’ e cheguei-me à direita para ele ter espaço à esquerda. O que é que ele pensou? O contrário! Quando ele percebeu que eu já não ia para a esquerda, era tarde de mais. Sem espaço para entrar por fora naquela curva, foi de frente e bateu no vértice do triângulo”, explicou na mesma entrevista, relatando também a conversa que teve com o piloto australiano nas boxes, após a corrida ter terminado. “Ele ficou ali e eu continuei. Nas boxes, veio falar comigo. Estava furioso, a protestar. ‘Why don’t you break sooner?’ perguntou-me ele. ‘A culpa foi tua, eu não saí da minha trajectória. E mais, dei-te o espaço para avançares à vontade. Ninguém tem culpa que tu penses mal’”, revelou. “Ele nunca mais se esqueceu de mim. Anos depois, escreveu as suas memórias: ‘Não acabei o GP Portugal-59 por causa de um ‘very dangerous local boy’ [risos]”, acrescentou ainda sobre aquele episódio.

Além da corrida em Monsanto, Nicha Cabral participou em mais quatro provas (correu pela última vez na F1 no GP de Itália, em Monza-1964 ), uma delas também em Portugal, no ano seguinte, desta vez no circuito da Boavista. Curiosamente, em 1960 a prova foi conquistada por… Brabham – já o portuense seguia em sexto lugar quando foi forçado a abandonar a corrida após um problema com a caixa de velocidades, na descida da Circunvalação.

O automobilista português participou também em quatro provas extra-campeonato, onde a sua melhor classificação foi um quarto lugar, no GP de Pau, em 1961.

“Não morri por milagre” A carreira do piloto portuense fica, de resto, marcada pelo grave acidente em França, no Grande Prémio de Rouen em Fórmula 2, em 1965, quando seguia a 200 quilómetros/hora. Ao i, o ex-automobilista também havia recordado o aparatoso acidente e os vários meses seguintes em que esteve internado. “Não morri por milagre. Despistei-me, dei duas voltas e fui parar à mata. O carro embateu numa árvore, partiu-se em dois e eu aterrei numa zona de silvas, que me ampararam o golpe. Saí todo picado, com 17/18 fracturas. Estive seis meses num hospital em Rouen, onde uma enfermeira salvou-me da morte com embolia pulmonar. Ela estava sempre ao meu lado e tinha a injecção pronta. Salvou-me a vida às duas e quatro da manhã. Só voltei a correr em 1967 ou 1968, em Monsanto. Ganhei a corrida com um Porsche Carrera. Aí, entusiasmei-me outra vez. Fórmula 1 nunca mais, por falta de verbas também”, lembrou, frisando as diferenças notórias na modalidade durante as últimas cinco décadas. “Não levava aquilo a sério. A Fórmula 1 não era o circo de agora e não tinha um manager. Tinha uns amigos e tal. Mas gostei da aventura”, assegurou.

Nicha Cabral manteve-se em atividade até 1975, em carros de Sport e Turismo, tendo participado várias vezes nas 24 Horas de Le Mans, e ainda realizou duas provas de Fórmula 2, no Autódromo do Estoril. Em 1973, no Grande Prémio de Portugal, em Fórmula 2, ficou em oitavo lugar, ao volante de um March, e no circuito de Benguela, em Angola, alcançou a última vitória da sua carreira. A última prova em que marcou presença foi nas 4 Horas de Jarama, em Espanha.

Após terminar a carreira nas pistas, Nicha Cabral foi convidado para dinamizar a escola de Fórmula Ford, que formou vários pilotos, entre os quais António Simões, Manuel Gião, Pedro Lamy, Diogo Castro Santos e Pedro Matos Chaves.

Desde sempre mostrou-se um apaixonado pelas artes, tendo sido também coproprietário de galerias de arte e um antiquário de referência.

Conhecido por ser um bon vivant, Nicha Cabral, amigo de Paul Newman, de Sacha Distel, de Paulo Autran ou Tônia Carrero, chegou a ambicionar uma carreira de ator. Ainda pelo mundo artístico, destacou-se após ter terminado com 20 valores o curso de violino do Conservatório Nacional de Música.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lamentou a morte do antigo piloto, lembrando-o como um “português com talentos e um percurso singulares”. O chefe de Estado lembrou que “foi o primeiro português a participar num Grande Prémio de Fórmula 1, no Circuito de Monsanto, em Lisboa, em 1959” e destaca que “teve uma longa carreira ligada ao desporto automóvel em diversas categorias, como piloto, como instrutor e como inspirador”.

Também a Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK) reagiu através das redes sociais. “Foi com profundo pesar que tomámos conhecimento do falecimento de Nicha Cabral, o primeiro piloto português na Fórmula 1 e uma figura incontornável do automobilismo português”, pode ler-se.

À TSF, Adelino Dinis, biógrafo do piloto, lembrou Nicha Cabral como “uma pessoa encantadora, muito conversador”. “Foi um pioneiro ao ser o primeiro piloto português a tentar fazer uma carreira internacional. Dizia-me muitas vezes que preferia ficar em último numa corrida onde estivessem os melhores do mundo do que vencer no seu bairro, ou seja, em Portugal”, acrescentou.

Nicha Cabral faleceu na madrugada desta segunda-feira no Hospital de São José, em Lisboa, onde estava internado, vítima de doença prolongada.