Na Netflix estão disponíveis várias temporadas de uma série com este título. Por debaixo das camadas mais ligeiras de humor (e com muitos momentos bem conseguidos), e para lá do “efeito de empastelamento” das criações com muitos episódios (para fazer render o peixe), a série tem que se lhe diga e merece atenção, entre o mais sobre o tema da família. Olhando com atenção – e sem menosprezar, antes pelo contrário, o entretenimento –, podemos encontrar ali alguns dos traços mais marcantes da família, causadores de alegrias e tristezas, construtivos e destrutivos, luz e sombra, possibilidade e impossibilidade. A família como um (o) lugar de ligações profundas, tantas vezes inexplicáveis, mas que são de tal forma fortes que até alimentam sem que nos apercebamos, ao mesmo tempo que também podem tolher, constranger ou até mesmo destruir, sem que verdadeiramente se dê por isso; ou, dando, sem que se queira, mas às vezes não podendo resistir. A família – terra que faz a planta brotar e onde se firma a raiz – é lugar de crescimento, de aprendizagem, de afetos, de calor, mas também de hipocrisia, de não ditos, de compromissos, de negociação, de culpa e perdão, de conformismo, de revolta, de insatisfação, de medos; e de permanente construção e reconstrução, umas vezes mais conseguidas, outras menos; e, em certo tempo e em certa medida, é sempre (deve ser) lugar de partida. Há solos que alimentam mais, outros têm menos nutrientes, uns fazem crescer e catapultam, outros permitem que a planta medre um pouco mas não a largam, e podem acabar por tê-la mirrada ou mesmo seca, porque a não deixam vicejar – ou porque ela mesma se não permite. Cada caso é um caso, e tudo depende do tipo de terreno, das características da planta, da conjugação dos elementos; depende de tanta coisa, e umas vezes com mais consciência, outras com menos. E quanto mais consciência, melhor (se se aguentar “o olhar olhando-se”, claro), porque melhor se pode cultivar a família como realidade e não como ficção, como lugar de mais e não de menos, como além e não como aquém. Tantas possibilidades de leitura da série para lá do bem-disposto entretenimento; e tantas possibilidades de tentativa de vida.
E há a família onde se vem ao mundo e/ou onde se cresce e a família que, depois, se pode ou não construir, para além daquela, sem a destruir ou esquecer, sem lhe deixar de dar uma mão de cultivo, mas também sem deixar que ela sufoque a nova construção ou lhe pese em demasia. E, também, sem exagerar na mimetização (embora haja uma parte sempre inevitável). E grande parte da vida adulta é feita no confronto (mais complementar ou mais conflituante) entre essas duas famílias, procurando um futuro que não retire o passado do presente, mas que não fique amarrado a ele ou em que a força ou a tentação do passado não sequem o presente. Não haja ilusões: cada qual tem de saber representar os vários papéis que lhe cabem, entre eles os familiares, mas também tem de saber quais as implicações, os pesos e as medidas e as “hierarquias” daquilo em que está metido, tanto mais quanto há outros envolvidos, quer no solo de onde brotou – embora, aí, sem escolhas, de uns e de outros – quer no solo que se meteu a construir – e, aí, com decisões e compromissos com os quais há que (tentar) ser consequente. Sob pena de burla de etiquetas, ou seja, misturar sob um mesmo conceito coisas diferentes, neste caso uma “família” e outra “família”. Não é tudo uma “família”, e não se conjuga tudo em cada altura da vida na mesma intensidade verbal. Pensar o contrário pode ser meio (ou mais) caminho andado para não ser inteiro num lado nem vicejar no outro, com danos para si e para os outros, porque há sempre mais do que um nestas complexas equações familiares. Essa pluralidade é, a um tempo, a riqueza mas também o problema.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira
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