O António Lobo Antunes escreveu: “Deus é o lado fresco da almofada”. Nas noites em que não durmo, os dois lados da minha almofada são sempre quentes, o que deve provar cientificamente a inexistência de Deus e da sua tão apregoada justiça divina. Esta semana, a minha filha Francisca, que eu amo até ao mais fundo de tudo o que sou, faz oito anos – há mais de cinco que não a vejo. Quando, na pureza dos seus olhos tão azuis que herdou da bisavó Manuela, aprendeu o significado da palavra pai, a mãe, Filipa Palmeirim, suplicou-me insistente, degradante e chorosamente que só lhe disséssemos a verdade aos 18 anos, horrorizada com esse estigma de ter uma filha ilegítima. O problema é que a verdade não se adia nem se esconde. Levada pelo instinto pequeno-burguês de uma Morgadinha dos Canaviais, forjou-lhe um pai na figura do marido, que nem sei quem é. O bonsaraz, na sua lorpice suburbana, tratou de exibir a menina como se fosse sua perante o grupelho que faz de conta que acredita na mentira, sem perceber o ridículo em que cai por entrar pelos olhos dentro que a Francisca não encaixa em gente da sua laia. Chamado a dirimir o insanável conflito, o Ministério Público, esse antro de incompetência e iniquidade que só consegue apresentar culpados na televisão e cujos processos os tribunais desfazem com a simplicidade de quem sopra um dente de leão, através de um amanuense analfabeto, notificou-me com esta alarvidade: “(…) como consta dos autos, a criança ja te (sic) um irmão e o seu núcleo familiar seguro e protetor”. Como se ela já não tivesse irmãos. Não basta a cavalidade de tratar por cima da burra um processo desta gravidade, com o desplante de nem saber ao certo como funciona a língua portuguesa. É a lógica macabra de um borrego manga-de-alpaca que se limita a despachar notificações sobre a vida de pessoas por dá cá aquela palha. Ficamos esclarecidos: se o Vampiro de Düsseldorf andar por aí a raptar os nossos filhos, desde que se descubram irmãos nos confins da Floresta Negra podemos descansar à sombra de núcleos familiares seguros e protetores. Não, a minha almofada não tem um lado fresco. E este país não tem Deus. Nem justiça sequer.
O lado quente da almofada
Quando, na pureza dos seus olhos tão azuis que herdou da bisavó Manuela, aprendeu o significado da palavra pai, a mãe, Filipa Palmeirim, suplicou-me insistente, degradante e chorosamente que só lhe disséssemos a verdade aos 18 anos, horrorizada com esse estigma de ter uma filha ilegítima. O problema é que a verdade não se adia…
JORNAL I
-
Edição de
O lado quente da almofada
Quando, na pureza dos seus olhos tão azuis que herdou da bisavó Manuela, aprendeu o significado da palavra pai, a mãe, Filipa Palmeirim, suplicou-me insistente, degradante e chorosamente que só lhe disséssemos a verdade aos 18 anos, horrorizada com esse estigma de ter uma filha ilegítima. O problema é que a verdade não se adia…
O António Lobo Antunes escreveu: “Deus é o lado fresco da almofada”. Nas noites em que não durmo, os dois lados da minha almofada são sempre quentes, o que deve provar cientificamente a inexistência de Deus e da sua tão apregoada justiça divina. Esta semana, a minha filha Francisca, que eu amo até ao mais fundo de tudo o que sou, faz oito anos – há mais de cinco que não a vejo. Quando, na pureza dos seus olhos tão azuis que herdou da bisavó Manuela, aprendeu o significado da palavra pai, a mãe, Filipa Palmeirim, suplicou-me insistente, degradante e chorosamente que só lhe disséssemos a verdade aos 18 anos, horrorizada com esse estigma de ter uma filha ilegítima. O problema é que a verdade não se adia nem se esconde. Levada pelo instinto pequeno-burguês de uma Morgadinha dos Canaviais, forjou-lhe um pai na figura do marido, que nem sei quem é. O bonsaraz, na sua lorpice suburbana, tratou de exibir a menina como se fosse sua perante o grupelho que faz de conta que acredita na mentira, sem perceber o ridículo em que cai por entrar pelos olhos dentro que a Francisca não encaixa em gente da sua laia. Chamado a dirimir o insanável conflito, o Ministério Público, esse antro de incompetência e iniquidade que só consegue apresentar culpados na televisão e cujos processos os tribunais desfazem com a simplicidade de quem sopra um dente de leão, através de um amanuense analfabeto, notificou-me com esta alarvidade: “(…) como consta dos autos, a criança ja te (sic) um irmão e o seu núcleo familiar seguro e protetor”. Como se ela já não tivesse irmãos. Não basta a cavalidade de tratar por cima da burra um processo desta gravidade, com o desplante de nem saber ao certo como funciona a língua portuguesa. É a lógica macabra de um borrego manga-de-alpaca que se limita a despachar notificações sobre a vida de pessoas por dá cá aquela palha. Ficamos esclarecidos: se o Vampiro de Düsseldorf andar por aí a raptar os nossos filhos, desde que se descubram irmãos nos confins da Floresta Negra podemos descansar à sombra de núcleos familiares seguros e protetores. Não, a minha almofada não tem um lado fresco. E este país não tem Deus. Nem justiça sequer.
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