Selma Uamusse. “Sempre fui um bocado de extremos”

Selma Uamusse. “Sempre fui um bocado de extremos”


Liwoningo, segundo álbum de Selma Uamusse, promete ser o raio de luz que irá iluminar o período atribulado que a humanidade está a viver.


Pode ser complicado ver o lado positivo da vida nos dias que correm, mas eis que surge um trabalho que procura ser essa luz ao fundo do túnel. Selma Uamusse, cantora moçambicana que vive em Portugal há largos anos e dedica a sua vida à música há quase duas décadas, lançou no passado sábado o seu segundo álbum, Liwoningo, expressão que na língua chope, utilizada no sul de Moçambique, significa luz. O projeto está dividido em duas partes, uma mais introspetiva e outra mais “festivaleira”, utilizando as palavras de Selma. O i esteve na semana passada na sala de ensaios onde a cantora e a sua banda têm afinado estas músicas para falar sobre este novo registo e perceber como foi a sua quarentena.

 

Como foi a sua quarentena?

Numa fase inicial, a maior frustração foi o facto de ter planeado lançar o disco no dia 27 de março e, como no dia 13 ficámos em casa, não foi possível. Ainda fiz uma atuação no dia 12, com um sentimento de que não devia estar a fazer aquilo com tantas pessoas num espaço fechado. Aproveitei o tempo em família, fiz música com o meu marido, uma coisa que não costumamos fazer. Fiz alguns concertos online, para o Theatro Circo, de Braga, e para o Festival Eu Fico Em Casa, e comecei a escrever artigos para a revista Gerador. Tentei sempre usar esta temporada de uma forma muito pró-ativa, fazer coisas tão simples como telefonar a amigos com quem não falava há muito tempo. Por isso, vivi a quarentena com muita tranquilidade. Agora, a nível prático e financeiro, houve aqui um confronto com a fragilidade do nosso setor: o facto de não haver uma organização adequada para a categoria de músicos, para podermos estar temporariamente sem trabalhar, o que até mesmo sem pandemia é necessário para podermos criar. Acho que vieram à tona muitas das fragilidades do setor, inclusive a falta de capacidade do Ministério da Cultura para apoiar os músicos. Assim como outros músicos, sou sócia-gerente de uma empresa, mas isso não significa que sejamos empresários ou que sejamos ricos, é só uma forma de gerirmos a contabilidade. Portanto, não fui abrangida pelo apoio da Segurança Social. A nível financeiro, houve uma evidência da fragilidade deste setor que, já por si, é incerto. Por vezes temos concertos, outras não. Por isso, comecei a equacionar de que forma poderia contornar e daí ter feito outras coisas. 

 

Porquê lançar agora Liwoningo?

Durante este período percebi que era importante que este disco nascesse, independentemente da pandemia, porque muitos se aperceberam da importância das artes, da música em particular, porque fez companhia a muita gente. Senti uma espécie de urgência para viver cada dia com muita alegria; então, comecei a trabalhar nisso. Acho que o facto de estarmos a viver uma pandemia global que afeta todos de alguma forma nos leva a considerar onde temos os olhos postos e quais têm sido as nossas prioridades. Pela primeira vez no mundo, toda a gente tem a noção de que não sabe o que vai ser o amanhã, seja pelas pessoas que foram muito afetadas a nível económico, seja a nível de saúde. Comecei a sentir mesmo uma urgência de sedimentar a minha fé e pensar no que acredito, no que não acredito e porquê, em sedimentar relacionamentos, em fortalecê-los e perceber que estas são mesmo as minhas pessoas, e viver cada dia a seu dia e as suas alegrias.

 

Sente que a experiência passada na pandemia vai ser sentida na arte?

Sou uma pessoa muito física, gosto de abraçar e beijar os meus amigos. Nos concertos tenho muito contacto visual com a audiência. O nosso comportamento diz muito sobre o que estamos a sentir, e o facto de não conseguir perceber a expressão muda muito como interpreto os silêncios ou as pausas, ou a falta delas. Acho isso perturbador. É obvio que há músicos que são muito introspetivos e que lhes sabe bem ter este recolhimento mas, no meu caso, esta alteração comportamental muda a forma como dizemos as coisas. Musicalmente, também há diferenças: mesmo que sejam as mesmas mensagens, estas acabam por ser ditas e sentidas de formas diferentes. Recentemente, tive oportunidade de estar em alguns concertos e era visível a alegria dos músicos que estavam a tocar para as pessoas, mesmo que não pudessem ver a totalidade dos seus rostos. Esta temporada, altamente criativa, veio revolucionar a forma como se comunica a arte e como ela nos inspira e, acima de tudo, como nós comunicamos isso para quem nos ouve, porque por muito especiais que alguns músicos sejam, quem faz música é porque quer ser ouvido ou porque tem alguma coisa a dizer. Acho que algumas mensagens se tornaram mais profundas e imperativas de serem cantadas.

 

Como foi a experiência de fazer os concertos online?

Nos primeiros concertos senti-me nervosa porque estava a atuar sem os meus músicos e para centenas de pessoas que não estava a ver. Há uma adrenalina estranha por estar a fazer aquilo de que gosto, mas também um vazio quando termina a atuação. Lembro-me de me virar para o meu marido e dizer-lhe: “Preciso de um copo de vinho”. Não é algo pleno nem muito satisfatório. Não temos qualquer tipo de controlo. Se os olhos são o espelho da alma, como muitas vezes se diz, os silêncios ou os aplausos também dizem muito sobre o que as pessoas estão a sentir. A música tem este dom de ser comunicação mesmo quando não temos o feedback do público, por isso sentia um pouco essa sensação de vazio. Se tivesse de ser assim para o resto da vida, equacionava mudar de profissão [risos], não é assim que gosto de fazer música.

 

Acha que vai ter de adaptar os seus concertos a esta nova realidade?

Este disco [Liwoningo] tem duas partes: uma festivaleira e animada e outra intimista e introspetiva. Acho que vai ser possível fazer um equilíbrio natural e transitório de um universo para o outro e espero conseguir fazer essa viagem com as pessoas. Sempre fui um bocado de extremos: ou estou em modo furacão ou sentimental e choramingas. Não me incomoda mesmo nada, até porque o silêncio é musical – às vezes não é preciso estar a dizer muita coisa, basta o meu respirar para levar as pessoas a um lugar intimista e há beleza nisso. Como dizia o Einstein, “Onde há um problema temos de encontrar uma oportunidade”, então tenho de encontrar uma oportunidade de apresentar a minha música de forma diferente neste contexto, mas torná-la uma potencialidade. Não posso sentir-me frustrada por não poder fazer determinadas coisas. Se calhar, nem vou sentir a necessidade de ser tão física e estarei mais concentrada na performance e nas canções em si.

 

Como foi o processo de composição de Liwoningo?

Não me considero compositora, sou mais uma intérprete, mas tento sempre oferecer o meu contributo, especialmente nas letras. Gosto de ter controlo em relação àquilo que digo. Quando canto, tem de ser uma verdade sentida e tem de ser algo com que me identifique. Não tenho absolutamente nada contra música mais romântica – estou a pensar em grandes músicas do David Bowie ou da Nina Simone –, mas gosto que aquilo que canto seja um pouco mais eterno e com uma mensagem que sirva para hoje ou para amanhã. Sou moçambicana e o meu repertório tem versado muito sobre este país, por isso convidei músicos e compositores moçambicanos, como a Isabel Novela, a Susana Travassos ou o Deltino Guerreiro, de Cabo Delgado, uma zona que está a ser afetada por ataques terroristas, para cantar uma canção que é uma homenagem à figura da mulher enquanto sustento da sociedade africana. Moçambique é um país muito grande em que a maior parte das coisas acontecem na capital, por isso senti necessidade de descentralizar a atenção da língua e fonética do sul e prestar mais atenção ao norte. Também colaborei com o Milton Gulli, novo membro da minha banda, ex-vocalista dos Cool Hipnoize, que traz a guitarra, que não usei no disco anterior, que para além de ser rock and roll também consegue abordar África de uma maneira moderna. [Este disco] é um melting pot de nações que, no fundo, tem sido sempre o meu objetivo: fazer música que não seja localizada, mas que possa servir e chegar a todos. Desde o princípio, sempre quis trabalhar no circuito internacional, não para ser famosa, mas para poder saber que a música é, de facto, uma linguagem universal. Às vezes, as experiências mais engraçadas até têm acontecido nos lugares mais improváveis, como a República Checa ou a Polónia, onde as pessoas não percebem absolutamente nada do que estou a dizer, mas são as primeiras a esgotar os CD ou as salas. Para mim, isso é muito reconfortante e revelador do poder da música de chegar a todos. 

 

Que línguas são utilizadas neste disco?

Neste disco, finalmente tenho uma canção em português, composta a meias com Pablo Lapidusas, Khanimambo Liwoningo. Também canto em inglês, em chope, em changana, línguas do sul de Moçambique, e em macua, do norte. Desta vez fico-me por aqui. [risos]

 

Liwoningo é uma palavra em que língua?

Vem da língua chope e foi uma homenagem à sua cultura muito particular, porque é lá que se toca a orquestra de timbilas, que é um dos instrumentos fundamentais da música que faço. Portanto, queria homenagear tudo o que esta cultura trouxe para a minha música, como também a dança. Podia ser luz em qualquer língua no mundo, mas optei por homenagear a cultura chope neste disco.

 

Disse que este álbum faz sentido para a fase de confinamento que vivemos, mas também ecoa no ressurgimento do movimento Black Lives Matter, por exemplo, com a canção No Guns.

Não foi propositado. Quando escrevemos a canção, eu e o Mbye Ebrima, da Gâmbia, estávamos a pensar no continente africano e em como as armas têm sido potenciadoras do não crescimento e estagnação de um continente tão cheio de matéria-prima e cultura. Quisemos torná-la mais abrangente e desenvolvi a letra nesse sentido, sobre a responsabilidade que existe, não só nas armas físicas, mas também nos documentos, nas leis, na responsabilidade dos Governos, que permitem invasões a países ou que estes fiquem a morrer à fome enquanto alguém fica a enriquecer. Esta música acabou por se adaptar bem ao movimento Black Lives Matter, um movimento com o qual tenho bastante empatia e que entendo como um movimento muito necessário, apesar de partir de uma história muito especifica, os afro-americanos. Existe racismo em todo o lado, até se viu em Portugal como as pessoas se movimentaram e organizaram manifestações. Tenho falado muito sobre racismo e exposto as situações pelas quais passei, mas vejo a situação americana como muito particular. O uso das armas físicas tem sido um elemento muito destruidor da sociedade americana. Para mim, esta música ganha ainda mais sentido e fico feliz quando uma música pode ser usada para um fim para o qual eu não a concebi, mas com que me identifico. 

 

Sente que Portugal tem feito um bom trabalho a criar música politicamente consciente ou devia melhorar nesse aspeto?

Os músicos têm desempenhado um papel fundamental na consciencialização de mentalidades e, se nem sempre o dizem nas suas canções, são os primeiros a manifestar-se quando existe uma situação de solidariedade para darem a cara, para angariação de fundos ou para dizerem: “Eu sou contra ou a favor disto”. Não acho que toda a gente tenha de fazer música de intervenção ou que tenha de estar sempre na frente de batalha; acho que o fazemos no nosso dia-a-dia, nos nossos movimentos e nas coisas a que nos associamos ou não. Há quem seja apologista de estar em todas as batalhas, eu prefiro escolher as minhas guerras, sei que há muitas para lutar, mas acho que os músicos têm sido fundamentais na sociedade para a influenciarem na forma de estar e pensar. Vejo muitos músicos a apelarem ao voto, a marcarem presença nas manifestações, são os primeiros a estarem nos movimentos de solidariedade. Se calhar a música de intervenção hoje não é tão evidente diretamente, mas acho que tem havido inspiração para falar sobre as coisas de várias maneiras. O hip-hop tem sido uma arma do futuro em que as coisas são ditas sem filtros e a verdade é que este movimento tem crescido cada vez mais e, apesar de não estar tão integrado nas categorias da música como seria o fado ou o jazz, acho que tem sido fundamental para alertar determinadas situações.

 

Apesar de a sua música puxar temáticas pesadas, é bem disposta e alegre. Acha que essa é a melhor maneira para ganhar as suas lutas?

Não acho que seja uma pessoa muito positiva, mas carrego em mim esperança, fé, amor e alegria e isso são armas mortíferas contra a depressão, tristeza. Só assim é que eu consigo viver, não consigo estar constantemente zangada ou angustiada e se existe algo que me deixe assim trabalho para o contornar. Por vezes é muito difícil ter fé, porque as situações são muitas vezes contrárias àquilo que gostaríamos de fazer, mas acredito que é preciso ver para além daquilo que está a acontecer num determinado momento, há um outro passo e um futuro longínquo que pode ser brilhante se trabalharmos para isso e que pode nunca chegar se nos mostrarmos indiferentes. Portanto, eu escolho não ser indiferente e fazê-lo sempre com uma nuance positiva e de amor.

 

Esse sentimento também parece estar ligado ao título do álbum, Liwoningo, que significa “luz”.

Foi com esse propósito [que escolhi esse nome]. Já sabia que o disco se ia chamar Liwoningo mesmo antes de ter o repertório todo, e o meu objetivo com este título era dizer que podemos ser sal e luz na nossa sociedade todos os dias Não precisamos só de o dizer, mas podemos fazê-lo de uma forma ativa, intervirmos e sermos agentes transformadores da sociedade. Diariamente, a nossa forma de estar, de falar, a forma como agimos para alterar uma determinada situação é ser luz no dia-a-dia da nossa sociedade.