Respeitinho, respeitinho. O que é preciso é respeitinho


Se a proposta de debates parlamentares bimestrais com o primeiro-ministro for aprovada, será caso para fazer luto de três dias – e de lutar para mudar na primeira oportunidade.


É reconhecido que o sistema político carece de reformas que o melhorem, vencendo insuficiências e vícios que se desenvolveram. As reformas principais centram-se na Assembleia da República, sede e arena da operação permanente da democracia, dignificando-a, garantindo ligação efectiva à cidadania e responsabilizando os deputados – o que só os engrandece em vez de diminuir, como tem vindo a acontecer paulatinamente.

Antes das últimas eleições, alguns partidos dedicaram a esta temática alguns parágrafos dos programas eleitorais. Infelizmente, agora que termina a primeira sessão legislativa, o saldo é de marcha-atrás: os partidos que apresentaram ideias e propostas nos programas não as seguiram; e, além de não terem seguido pelas portas anunciadas, lançaram iniciativas e medidas que vão no sentido inverso, baixando ainda mais a qualidade do sistema. É triste: a Assembleia da República fecha a sessão legislativa 2019/20 com mais golos na própria baliza.

O centro das atenções tem sido ocupado pelas propostas do PSD e do PS quanto às sessões plenárias e às comissões, apontando no sentido da decadência parlamentar, ressaltando a questão dos debates com o primeiro-ministro, momento alto do debate político nacional e da fiscalização parlamentar ao Governo.

Devo dizer que, dependendo do quadro geral das reformas, apoiaria o regresso ao modelo dos debates mensais, que era o que tínhamos antes dos actuais debates quinzenais. Uma década mostrou que estes não servem, em termos de substância política e progresso democrático. José Sócrates sabia o que fazia ao seguir por aí, manipulando em seu benefício a feira das vaidades na oposição. Os debates perderam a densidade que já tinham ganhado no modelo mensal. Evoluíram, quase sempre, para exercícios fúteis de pugilato parlamentar, submetidos ao circo mediático, potenciando a importância do fait-divers e da política de casos e uma maior centralização política nos líderes. Podia não ter sido assim, mas as direcções políticas e parlamentares assim decidiram, estragando um modelo que nunca chegou a ser bom e não amadureceu para proveito da democracia. Se, no modelo dos debates mensais, às vezes outros deputados ainda intervinham e o debate servia o esclarecimento objectivo e o debate político sério, os confrontos à quinzena foram submergidos pelo teatrinho inútil de campanha eleitoral permanente. O Parlamento ficou mais reduzido a apenas seis ou sete deputados, com 223 membros de claques. Nem o Governo de Portugal nem a democracia ganharam com a mudança.

Partidos e lideranças parlamentares, em conjunto com o Governo, podiam regenerar o formato quinzenal, entregando-o ao critério exigente do proveito para a democracia. Não o fizeram em mais de dez anos; e é duvidoso que o conseguissem, por força de uma adversidade de peso: os projectos e interesses de poder pessoal. Foi isto que José Sócrates manobrou e usou. Os debates quinzenais em nada impediram ou sequer travaram o mergulho mais fundo da nossa democracia: o abismo que obrigou a pedir socorro à troika. E, nas legislaturas seguintes, com Passos Coelho e António Costa, nunca se afirmou nem percebeu o interesse da teatralidade quinzenal. Soube muitas vezes a pura perda de tempo. Por isso, o regresso ao modelo dos debates mensais poderia não ser mau.

O inacreditável, porém, é que se aproveite este movimento para nos empurrar para um modelo que nunca tivemos: debates bimestrais com o primeiro-ministro. A proposta exibe uma voracidade antiparlamentar de que não se estava à espera; e, comprometendo o Governo e as bancadas do partido do Governo e do maior partido da oposição, põe-nos num quadro político de paradoxo e perplexidade. Procede de uma visão tão inaceitável do Parlamento que, quanto mais se tenta explicar e justificar, mais se afunda. No momento em que escrevo é impossível saber como será a votação da proposta. Mas já é suficientemente triste que tenha chegado aqui, e logo endossada pelos dois maiores partidos. Se for aprovada, será caso para fazer luto de três dias – e de lutar para mudar na primeira oportunidade. Se não for, fica um sinal de alarme: nem sempre as ameaças vêm dos populistas oficiais.

Mais grave é a questão dos debates europeus, com a presença parlamentar do primeiro-ministro reduzida a duas vezes por ano. Esta é uma das histórias mais medíocres da nossa vida parlamentar, indigna da presença europeia de Portugal. Diversamente do que precisamos, os maiores partidos (PS e PSD) encerraram, logo no final dos anos 1980, o seguimento da política europeia na lógica de um clube privado, a dois: eles eram os “europeus”; os outros, marginais, “antieuropeus”. Esta clausura, adentro de gabinetes e corredores de cúmplices do poder, afastou a opinião pública e o permanente conhecimento democrático: se ainda hoje, 35 anos depois da adesão, a maioria não sabe para que servem as eleições europeias e duvida que sejamos parte da Europa, isso é muito fruto desses eurocadeados do bloquismo central. Quando foi da Convenção para a Constituição Europeia, foi escandaloso ver PS e PSD abocanharem a totalidade dos lugares do Parlamento português. Mostra que não percebem o essencial do assunto: o essencial é participação. A política de Portugal, como é óbvio, será sempre definida e decidida por Governo e maioria; mas, quando se trata de participação na Europa, o fundamental é estarmos todos. Isso é que nos faz presentes, conhecedores e activos.

O regime parlamentar quanto aos assuntos europeus foi evoluindo com esforço, a pouco e pouco. Ainda está aquém do necessário, mas melhor do que no princípio. Dar passos atrás, de volta à lógica do clube, é dramático para Portugal. É mostrar que não percebemos o que a Europa pede de nós e o que é o empoderamento colectivo das questões europeias. É afastar os cidadãos do debate europeu. E é pôr em perigo muitas das nossas decisões. Não sendo nós um dos mais poderosos países, o nosso interesse (incluindo o do Governo de Portugal) estará tanto mais protegido quanto mais estreito e frequente for o acompanhamento parlamentar, sobretudo dos passos de quem manda no momento de decidir.

O ramalhete do erro é fechado pela ideia infeliz de reduzir a duas as sessões plenárias semanais, reforçando ainda mais o peso das comissões. É a intensificação da funcionalização parlamentar. A Assembleia da República não é uma fábrica de leis. Não existe para produzir leis e resoluções como quem fabrica salsichas. O Parlamento é melhor se produzir menos leis, mas muito boas. O débito do caudal parlamentar interessa pouco. O que interessa é que o Parlamento respire com o povo enquanto legisla, fiscaliza e debate – e isto faz-se em plenário, em aberto. É deplorável, por exemplo, que a lei da eutanásia, muito sensível e estruturante da cultura jurídica e social, estivesse em plenário apenas por duas horas e 40 minutos e, depois, todos os debates, difíceis e essenciais, tenham decorrido num grupo de trabalho, não sendo seguidos pela opinião pública. Isto é o contrário do que um Parlamento deve ser. Continuar por aí é destruir a responsabilidade democrática e a vitalidade da democracia.

Para construir a qualidade da democracia é preciso apartar a velha cultura do respeitinho. O que faz falta são deputados municiados com poder e responsabilidade pelo acto de eleição e uma cultura de funcionamento parlamentar que abra e não feche, que não esconda, mas convoque, que se mostre e, por isso, se dê ao respeito.

 

Advogado
Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990