Amador e Benedicta são os nomes que tinham de ter. São as duas personagens que protagonizam a terceira e mais recente longa-metragem de Oliver Laxe, cineasta de origens galegas que tem vivido entre a Corunha, França e Marrocos, de onde saíram as anteriores longas, Todos vós sodes capitáns (2010) e Mimosas (2016). Para O Que Arde, estreado no ano passado na secção Un Certain Regard de Cannes, onde venceu o Prémio do Júri, e exibido pela primeira vez em Portugal no último Leffest, em que o i entrevistou o realizador, regressou ao lugar onde nasceu a sua mãe, nas montanhas galegas do Lugo. Para uma história em torno dos fogos e do que é ainda a vida no campo, o “determinismo” da vida no campo. “Na Galiza, e em toda a Espanha, há um eco do campo que não existe tanto noutras partes da Europa. Mesmo que tenhamos nascido na cidade, através dos nossos pais estão ainda muito presentes estes valores do campo”. Talvez por isso seja capaz de nos tocar a nós, portugueses, tão profundamente este gesto de contemplação de Oliver Laxe, a que temos oportunidade de regressar agora que O Que Arde pode por fim ser visto em sala.
Depois dos dois primeiros filmes, em Tânger e no Atlas, em Marrocos, este é o primeiro rodado…
… fiz uma curta-metragem. A primeira vez que vim a um festival em Portugal vim ao IndieLisboa com uma curta que fiz em 2008 ou em 2009, um filme que está muito relacionado com o O Que Arde e que já tinha sido filmado na Galiza.
Vem já desse tempo esta vontade de fazer este filme sobre os incêndios?
Vem daí. Há muitos anos que tinha vontade de filmar os incêndios, não sei se por atração ou por repulsa. Como cineasta, senti-me sempre muito atraído pelo fogo. Creio que sou um pouco pirómano. Mas digamos que a intenção principal do filme era fazer uma homenagem aos meus antepassados. À minha família, aos valores do campo. Creio que este filme é um grito do campo, um berro, um gemido de orfandade do campo. Estou a começar a entendê-lo ao escutar o espetador, porque a conclusão a que chego…
… do que foi ou o que representa afinal este filme?
Porque há uma dor, uma dor do campo, creio.
Se quisermos relacioná-lo com os filmes anteriores, é um bocadinho transpor para o que será o contexto da Galiza aquela ideia dos esquecidos.
É um filme mais crepuscular porque a Europa é mais crepuscular. Quando estou em África, os meus filmes são um pouco mais solares, mais luminosos. Mas a Europa está a morrer.
Quando me referia aos esquecidos referia-me ao tipo de situações e de pessoas que são retratadas. Acabam por ser sempre os abandonados pelo sistema, como nessa Galiza rural. Gosto de pessoas rotas [palavra galega para “quebrado”]. Gosto de pessoas rotas porque as pessoas rotas, em geral, têm fissuras no coração e é através dessas fissuras que passa a luz. A luz passa através da rutura do coração. Comovem-me muito esses borderlines, esses outsiders, os solteiros da montanha, os Amadores, tudo isso me comove muito. Isto também existe na cidade: estas pessoas que são muito sensíveis mas que não têm as ferramentas para viver neste mundo, as ferramentas psicológicas para viver num mundo que não tolera a fragilidade, que não tolera as coisas pequenas, que hoje em dia estão esmagadas. E, com elas, o rural também. É um pouco isso. Estes personagens, estes animais feridos que se escondem, que se fecham a mim, comovem-me muito. E as mães, as mães galegas – a Galiza não é uma pátria, a Galiza é uma mátria. É muito mais feminina do que o resto de Espanha. Não é melhor nem pior, mas é, se calhar, mais misteriosa, mais esotérica, mais feminina. Creio que nisso tem algo semelhante a Portugal.
Estava a pensar justamente nisso. É um filme que nos é muito familiar, que relacionamos muito com a realidade no norte de Portugal, sobretudo.
Sente que é familiar?
Sim. Aquele tipo de paisagem, de lugar, aquele tipo de pessoa, aquela forma de estar.
Os barulhos do campo são iguais em todo o mundo, na verdade. É um filme muito essencial. Já o apresentei no Canadá, na Rússia, no Japão, onde estive agora. E, como é essencial, sentimos a familiaridade. É fácil dizer-se, na Rússia, “a Benedicta parece a minha avó”. Não gosto muito da ideia de um lugar universal, porque a ideia de universal tem uma conotação globalizadora e a mim interessa-me falar do essencial. Quando vamos à essência de algo, é quando podemos ser reconhecidos noutras culturas. Mas, efetivamente, por proximidade cultural, geográfica, histórica, linguística, social, creio que sim, que há uma relação de espelho com Portugal.
A ideia do fogo e dos incêndios vem aqui, neste contexto do campo de que estamos a falar, esta ruralidade quase esmagada, como uma metáfora também para essa Europa que dizia ainda agora estar a morrer?
Não gosto muito da palavra metáfora porque não há símbolos, as coisas que vemos…
… são o que são.
Quero mostrar o que se vê. Mas, efetivamente, é um mundo que esmorece, que morre. Mas o fogo sempre esteve ali durante a História. O fogo purifica também, limpa. Há uma transitoriedade, uma aceitação do fogo no campo. Muitas vezes, enquanto fazia o meu trabalho de pesquisa, ouvia os camponeses dizer “ardeu porque tinha de arder”. Há um determinismo no campo… “ardeu porque tinha de arder”.
Que tipo de trabalho foi esse? Os atores do filme são atores não profissionais, e todas as personagens mantêm os nomes deles.
Fiz um casting. Já tinha escrito um guião. Filmei na aldeia onde nasceu a minha mãe.
Porque neste regresso à Galiza não foi viver para o campo, estava a viver na cidade.
Não, vivíamos na Corunha. Mas íamos aos fins de semana, estou muito habitado àquele lugar. Mas foi um trabalho sobretudo de olhar para dentro. Os gestos: como se corta o pão, como se fala às vacas… Qual era mesmo a pergunta?
Em que processo foi escrito o argumento e como chegou a estes atores.
Foi esse processo de olhar para dentro. E eu convivo com pessoas como a Benedicta e o Amador na minha família.
Mas já se conheciam?
Não. Fiz um casting naquela comarca e foi um trabalho de tempo, de paciência, de confiança, de familiaridade. Foi fazer leituras de guiões juntos, ensaiar e, pouco a pouco, ir reescrevendo um pouco com as suas palavras, com as suas… relativamente, porque, por exemplo, a Benedicta é alguém que na vida real fala muitíssimo. É uma mulher impressionante, muito interessante. No filme tivemos de baixar muito a energia dela – ou transformar-se-ia numa mãe castradora. Nos ensaios, ela não deixava o Amador falar. Eles trabalharam como atores.
Houve um argumento escrito nos moldes tradicionais.
Exato, fomos reescrevendo juntos, a partir dos ensaios. Havia coisas que diziam, palavras de que eu gostava muito e que não estavam no guião que, como gravo os ensaios, à noite introduzo no guião.
E o que o levou a decidir manter nas personagens os nomes reais dos atores?
Precisamente porque gosto muito da vida e acredito que o cinema é interessante quando está no limite entre o que controlamos e o que não controlamos. A vida está sempre a dar-nos presentes. A Benedicta é um nome perfeito para aquela personagem. Se quisesse escolher um nome para o papel, Benedicta, a “bem dita”, é muito bom. Amador para um possível pirómano, “o que ama”… que é também o que “ama a dor”. Gosto de escutar, de escutar a vida.
E nessa fronteira entre o que é ficção e o que é documental, este papel, o papel de um pirómano condenado, teve que peso para o Amador, numa comunidade tão pequena como esta em que o filme foi rodado?
Sobretudo porque ele é um guarda florestal. E já recolheu provas para ajudar à detenção de pirómanos. Pirómano é um mau nome que a sociedade encontrou para um incendiário. Porque o pirómano, alguém que tem um trauma, representa apenas 3% das causas dos incêndios. O Amador parece-me um personagem muito bonito, é alguém muito amoroso, alguém que cuidou da mãe durante 25 anos. Das pessoas que vemos no cinema, quantas cuidariam da mãe durante 25 anos? Uma, duas? Poucas ou nenhuma. Isso parece-me muito nobre. Aceita a sua vida, está com a mãe, cuida dela, cuida dos animais… não os julga e os animais não o julgam a ele.
São os únicos que não o julgam, com exceção da mãe.
É alguém que vive em aceitação. Tem os seus problemas, é um animal ferido, que se esconde também, que não socializa… mas parece-me muito digno. A Benedicta e o Amador parecem-me muito dignos, muito nobres. O mundo está a cair, a esmorecer, e eles continuam, com os seus valores centenários, a cuidar das vacas.
Mas há outra opção naquele lugar? Ele pergunta à veterinária: “Porque estudaste se querias viver no campo?”
Há sempre outra opção. Ele usa um blusão de couro, um blusão de couro gasto. E não temos de o ler ou entender assim, mas dá a impressão de que é uma pessoa que já esteve na cidade. Que já passou pela cidade mas que lhe correu mal. E é com esse blusão que vai com as vacas.
Sim, do passado do Amador não sabemos nada. Sabemos que esteve preso, o resto imaginamos apenas.
Como muitos jovens, terá tentado a cidade nalgum momento. Ou não.
Mesmo em relação às razões pelas quais esteve preso exatamente, ao que aconteceu antes, temos muito pouca informação.
Há aquela sequência no princípio em que percebemos que esteve na cadeia…
…sim. Mas é criada uma certa confusão no final. Terá sido ele realmente o responsável pelo incêndio pelo qual foi condenado?
Há interpretações de todo o tipo. Não sabemos, mas sentimos. Isso é que temos de ver. Umas pessoas sentem uma coisa, outras sentem outra diferente. Há até espetadores que sentem que ele é inocente, que esteve preso de forma injusta.
Era exatamente a isso que me referia.
É uma abertura. Não era assim tão necessário que lhe falasse do passado do Amador para que sentisse algo. Entende onde quero chegar? Creio que o filme é claro onde tem de ser claro e que há um espaço de polissemia. A vida é complexa, não quero dar respostas. Quando tentamos dar uma resposta num filme estamos a impedir que o espetador sinta, acredito eu. A minha intenção era que chegássemos ao final da película e que, quando vão atrás do Amador, empatizássemos com todos. Que empatizássemos com os vizinhos, que entendêssemos que estão cansados, desesperados, que empatizássemos com ele, o Amador, que empatizássemos com a mãe. [pausa] Se ele é culpado ou não, para mim vai dar ao mesmo. Todos somos culpados, na realidade, não? E inocentes.
O filme abre com um eucalipto vermelho. É como se estivesse a sangrar quase e como se viesse já como prenúncio de alguma coisa. Aquele eucalipto estava assim?
É um eucalipto de 120 anos, tem protuberâncias, tem deformações, mas não está doente. Às vezes, a casca dos eucaliptos cai. Mas está bem aquele eucalipto, está saudável. Gosto que se perceba que é um eucalipto. Preocupava-me muito se muitos espetadores achassem que pudesse ser um carvalho ou um castanheiro, uma árvore local, porque preocupa-me esta questão do que é local e do que vem de fora.
Porque há essa questão, que existe também em Portugal: a questão dos eucaliptos.
Este filme procura transcender todas as dialéticas. Ela di-lo, a Benedicta: se vão sofrer é porque sofrem, todos. As árvores, os seres humanos. Também não queria fazer um filme a defender a essência galega contra o que vem de fora. Indiretamente, é um filme muito galego e está a ser um fenómeno social na Galiza. É o filme galego mais visto de sempre: 70 mil pessoas foram vê-lo em Espanha. Para um filme falado em galego, é muitíssimo. Está a ser exibido na versão original [com legendas em vez de dobragem] e há muito poucas salas [que o fazem] em Espanha. Está a ser um filme muito estruturante, no sentido em que está a servir a sociedade, está a ser um espelho. Está a gerar muita autoestima nas pessoas – é também o primeiro filme galego no Festival de Cannes. É poderoso, isto. Não aconteceu sequer com filmes [falados em] catalão ou em basco antes.
Acredita que tem a ver com a questão dos incêndios?
Não… É sobretudo um filme sobre o campo. A Galiza é campesina, há uma identificação. Há muita gente que chora porque recorda a sua família. O filme liga-se ao interior do espetador. Na Galiza, e em toda a Espanha, há um eco do campo que não existe tanto noutras partes da Europa. Mesmo que tenhamos nascido na cidade, através dos nossos pais estão ainda muito presentes estes valores do campo.