Há assuntos que causam estranheza por tamanho ensurdecedor silêncio que os acompanham na gritaria do dia-a-dia.
Por estes dias, apenas com diminuto “palco mediático” através da breve chamada de atenção numa peça jornalística de um diário deste fim-de-semana, a ministra de Estado e da Presidência anunciou que vai arrancar em breve a contratação pública de um projeto que visa “acompanhar e monitorizar o discurso de ódio online”. Causa medo só de ler.
Mas, primeiro, convém salientar que o Governo português afirmou, através da ministra Mariana Vieira da Silva, que pretende, e cito, “perceber melhor a propagação do discurso de ódio nas plataformas online, as mensagens que contém, identificar os autores, monitorizar os processos de queixas, entre outros aspetos”. Não foi outra qualquer pessoa que o disse, foi o Governo deste país que salientou que irá identificar autores que, em determinado momento, expressaram livremente a sua opinião sobre determinado assunto.
Sabendo agora o País que está “em vias de facto” de dar início à contratação pública de um projeto que deverá traduzir-se depois num barómetro mensal de acompanhamento e identificação de sites, mesmo no silêncio e sem foco de importância de debate do país, estamos todos informados. Está feito. Dizer-se “ah, não sabia”, já não dá. Lamento.
Informados, certo, mas, porém, e sendo justo, é bom saber que o assunto já passou também “por entre pingos da chuva”, e de ausência de mediatismo, pelo Parlamento português. Foi na Comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, numa audição regimental, que a ministra Mariana Vieira da Silva avisou ao que ia o Governo liderado por António Costa.
Uma palavra de ordem neste raciocínio, em comum acordo com a referida governante do PS. Disse a ministra da Presidência sobre as redes sociais que “Discursos de ódio são crime, quer se passe fora ou dentro da Internet”. E muito bem, Senhora Ministra! Embora, pese melhor opinião, seja uma verdade de La Palice o que foi dito nessa curta afirmação. É, e sempre será, uma verdade trivial.
Convém refletir de forma franca, agora, sobre as fragilidades e incoerências que advêm desta medida que deve ser vista como preocupante.
Comecemos pela naturalidade da aceitação política de quem tem responsabilidade. Sem se conhecer objetivos a longo prazo deste projeto, muito menos as suas respetivas consequências para com os “incorretos”, para quando esta explicação?
Paralelamente, não será que politicamente é estranho (e urgente!) que alguém com responsabilidade política peça, na comissão ou fora dela, que se explique o âmbito material e formal deste projeto? Ainda ninguém o fez.
Esta matéria e como se apresentou, de forma enfezada e frágil sem quaisquer conclusões ou objetivos, faz-nos lembrar George Orwell. O famosíssimo escritor inglês nascido na Índia Britânica, que veio ao Mundo com o nome de Eric Arthur Blair e criou o seu pseudónimo Orwell que encantou e encanta ainda todo o mundo através de romances, reportagens, cartas ou, como na obra que irem expor, ensaios.
O escritor britânico faleceu em 1950, mas ainda hoje, setenta anos depois, é evidente que os seus ensaios, de formas distintas e substratos sociopolíticos diversos, todos trataram e promoveram a verdade e a sustentabilidade democrática das nações.
Hoje, numa altura em que as fake news deambulam e pululam de página em página e de boca em boca, tornando virais diversas inverdades, os textos de Orwell tornam-se mais necessários e importantes para a nossa sociedade do que propriamente o eram até falecer, em Londres, no primeiro mês de 1950.
Das obras mais conhecidas e lidas deste autor, temos a obra “1984”. Seguramente, uma das distopias mais importantes da literatura mundial.
Curiosamente, esta obra, sobejamente lida em todos os continentes deste nosso planeta, teve dois picos de venda na última década. Tornou-se Best-Seller em janeiro de 2017, liderando a destacada lista de obras mais vendidas da plataforma Amazon, após a tomada de posse de Donald Trump. Anos antes, e é aqui que coincidências nos caberão refletir, acontece em 2013 quando Edward Snowden revelou o caso de monitorização de dados feito pelo Governo dos Estados Unidos da América.
Portugal é uma sociedade livre. Ponto final, parágrafo.
Como sociedade livre que somos, temos de promover a tolerância contra os extremismos que afetam as liberdades individuais e coletivas e, recuperando vários pensamentos que também George Orwell subscrevia no século passado, como pode a Assembleia da República deixar de escrutinar qualquer iniciativa que vise condicionar a liberdade de expressão ou infringir a privacidade de todos e cada um dos portugueses?
A liberdade de todos nós não o deve permitir.
O medo assente na obra “1984”, datada de 1949, de Orwell, em que (spoiler alert!) uma região do superestado da Oceânia, num planeta em estado de guerra perpétua, que tem um sistema de vigilância governamental onipresente e em que a manipulação pública e histórica existe e é aplicada, não deve passar de uma importante distopia literária.
Assusta pensar que um Governo português, em pleno 2020, se lembre de lançar um projeto de vigilância governamental (coincidência de linguagem com a obra, take I) que identifica pessoas, monitoriza pensamentos escritos (coincidência de linguagem com a obra, take II) e não apresenta de forma formal e oficial quais as consequências de quem for sinalizado como “incorrecto” ao Olho do Governo (coincidência de linguagem com a obra, take III)
Para George Orwell, na obra 1984, os tais habitantes deste superestado da Oceânia são governados por um regime político totalitário e, eufemisticamente, vá, chamado de "Socialismo Inglês" (socialismo também? Ui, coincidências aos molhos) que fica na obra encurtado para a palavra "Ingsoc", dita na novilíngua, a linguagem inventada pelo dito Governo totalitário presenta na obra literária “1984”.
Mas há mais coincidências entre a obra “1984” e o ano de 2020, segundo palavras da ministra Mariana Vieira da Silva. Na obra “1984”, o superestado é monitorizado por uma elite privilegiada do Partido Interno que, juntamente com o governo, persegue o individualismo e a liberdade de expressão como "crime de pensamento". Será que é isto que pode ser aplicado pelo PS de 2020 e que era aplicado pela "Polícia do Pensamento” no livro 1984?
Será que é isto que o Olho Orwelliano deste projeto ambiciona também?
Esperamos e sabemos que não. Os portugueses não o iriam premitir. Mas, sem objetivos apresentados nem explicações dadas, podemos igualmente temer o pior. O pior, na obra “1984”, era representado pela Tirania que era supervisionada pelo líder do Partido de Governo, o “Grande Irmão”, sem qualquer preocupação pelo bem dos outros e apenas no seu próprio bem. Se, e só se, acontecer… na nossa novilíngua portuguesa poderemos chamar Grande Irmão António Costa?
Esperemos que não. Que seja apenas uma analogia.
Mas, sobretudo, que Portugal não entre em testes piloto de distopias que erraticamente não evoluem qualquer sociedade livre e democrática.
Que haja escrutínio parlamentar para não se “para-lamentar” de futuro. Que sejamos livres na essência do pensamento de cada um, sem obstaculizar o português do lado na sua liberdade individual. É isso que décadas de conquista democrática nos conferiram.
Que o governo, e a ministra Mariana Vieira da Silva, foquem-se em prioridades maiores ao País ao nível das liberdades individuais de cada um.
Que se foquem na ausência de “liberdade financeira” de mais de um milhão de funcionários de empresas que estão castrados de sonhos em consequência da COVID-19. Que pensem em restaurar a “liberdade económica” de todos os agentes turísticos do país que veem muito mal a esperança de retorno financeiro após o verão de 2020 e talvez 2021, para sustentar os seus colaboradores e auferir o que as suas famílias precisam para viverem em liberdade coletiva.
Que seja essa a prioridade de “liberdades” da Senhora ministra. Mas, em 1984 ou 2020, que haja sempre o direito da liberdade de expressão de cada um de nós. Com ou sem Orwell. Com ou sem redes sociais. Carlos Gouveia Martins