Este é o título original do livro da jovem economista e jornalista holandesa Sanne Blauw. Que acabou de sair pela Bertrand com o título O Poder dos Números. O título original, respeitado nas traduções alemã e italiana, além de ter mais piada, dá uma ideia mais precisa da intenção do livro, que é chamar a atenção para a manipulação que hoje prolifera através de números, em especial as estatísticas. A tradução em inglês, que saiu há dias, é The Number Bias.
Ao contrário do que diz a vox populi, os números enganam. Há por aí muita gente a enganar-nos com os números. Muitos números divulgados pelos media são manipulados, de acordo com os interesses das pessoas que estão por detrás. Como Blauw esclarece, os números precisam de palavras: fazem parte de discursos. Diz, logo no início, que “este não é um livro anti-números. Os números, tal como as palavras, não têm culpa, são inocentes. São as pessoas por detrás dos números que cometem os erros.” A questão não é apenas dos emissores, mas também e principalmente dos receptores, “porque nos deixamos seduzir e iludir.” Este livro visa evitar a ilusão, para o que são úteis as seis questões de verificação com que encerra a obra, à frente das quais estão: “Quem me apresenta o número? Que sentimento me desperta?”
Blauw refere várias vezes, com encómio, um livro que é um clássico sobre estatística. Intitula-se Como Mentir com a Estatística e é seu autor um sagaz jornalista norte-americano, Darrell Huff, que antes tinha escrito sobre temas tão díspares como a fotografia, as profissões de futuro e os cães. O certo é que se tornou “o maior bestseller de todos os tempos*” (*na área da estatística). Passado meio século, uma das melhores revistas de estatística dedicou-lhe um número especial, numa homenagem da ciência ao jornalismo. Propus esse livro para a colecção Ciência Aberta da Gradiva, onde saiu em 2013, com muitos anos de atraso relativamente ao original (que é de 1954), mas um bom livro mais vale tarde do que nunca. Huff abre com a famosa frase de Benjamin Disraeli, primeiro-ministro do Reino Unido no século XIX, sobre a estatística: “Há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras enormes e estatísticas.” Junto mais duas, de autores anónimos, de meu reportório: “O estatístico usa a estatística como um bêbedo usa um candeeiro: mais para suporte do que para iluminação” e “A estatística é como o bikini: o que mostra é sugestivo, mas o que esconde é essencial” (há versão masculina).
São inúmeros os exemplos do mau uso de estatísticas, designadamente o absurdo que é, por vezes, a redução de uma realidade complexa a um só número: já foi dito que a estatística é a disciplina que prova que o ser humano tem, em média, um testículo. Blauw comunica-nos o engano das médias através de uma pergunta: Como é que os passageiros de um autocarro podem, em média, ficar milionários de repente? Resposta: Basta que Bill Gates entre nele.
O Poder dos Números ilustra, com vários exemplos, o uso e abuso da estatística, salientando tanto as suas vantagens como os seus perigos. Conta-nos que a inglesa Florence Nightingale, a fundadora da enfermagem no século XIX, que assistiu muitos combatentes da Guerra da Crimeia, foi pioneira na apresentação visual de dados estatísticos. Conseguiu com infografias passar úteis mensagens sobre saúde pública. E conta-nos também a história do médico escocês Archie Cochrane, este no século XX, que defendeu a medicina baseada na evidência científica e que hoje dá o nome a uma instituição que faz metanálises. Cochrane, feito prisioneiro de guerra pelos alemães em 1941 na Grécia, tratou milhares de companheiros de infortúnio, enquanto reflectia sobre as estatísticas da medicina.
Blauw discute a utilização dos números na questão racial: o que significa dizer que os negros têm um QI inferior ao dos brancos? Basicamente nada. Aliás as próprias noções de negro e branco são discutíveis, uma vez que, com base na genética, não se deve falar de raças. O biólogo norte-americano Stephen Jay Gould abordou a questão no seu livro A Falsa Medida do Homem (a tradutora, que fez um bom trabalho, não reparou que este livro está traduzido em português: Quasi Edições, 2004). O QI mede o quê? Já alguém disse que medirá a inteligência se e só se esta for definida como o resultado de um teste de QI. Algo parecido se passa com o PIB, essa verdadeira “vaca sagrada” dos economistas, que não passa de um índice convencional para medir a riqueza.
Blauw insurge-se contra os rankings, que hoje se usam a torto e a direito, designadamente para ordenar universidades. Dada a margem de incerteza dos valores nas classificações a ordem na lista, em geral, pouco significa. A autora não se cansa de perguntar: quem mede o quê e para quê? Quem mede tem sempre um objectivo prévio e descarta tudo o que não o servir.
Um caso de estatística deficiente foram os Relatórios Kinsey, sobre o comportamento sexual humano, saídos nos anos 40 e 50, que romperam com alguns dos tabus da época. De facto, a amostra não era aleatória, por se basear no voluntariado. Para a edição portuguesa do livro de Huff, Dinis Pestana, professor de Estatística da Universidade de Lisboa, escreveu um engraçadíssimo prefácio, onde refere a dificuldade em obter informação de teor sexual que seja fiável. Não resisto a recontar a história que ele conta de uma antropóloga que foi medir o pénis de bosquímanes no sul de Angola. Para conseguir voluntários, oferecia uma galinha. Parece que houve casos em que os colaboradores encheram um galinheiro, com as idas repetidas à medição. Isto para não falar já da interferência da observadora sobre o objecto observado. Pestana descreve a técnica de observação: dois soldados portugueses esticavam um lençol com o indígena de um lado e a antropóloga do outro, enquanto ela metia por baixo a régua…
Há uma profusão de problemas na estatística. Nos inquéritos para fins estatísticos as perguntas podem ser insidiosas (de novo interferência do observador sobre o observado!). E, além disso, as pessoas mentem, mentem muito. Se se perguntar a alguém se lê o Jornal de Letras ou a Nova Gente, o resultado não baterá certo com as vendas. Um método mais seguro do que perguntar será vasculhar no caixote de lixo.
O capítulo 4 de Blauw intitula-se “Fumar provoca cancro, mas as cegonhas não trazem bebés.” Nele se descreve como a indústria do tabaco usou durante muito tempo todos os meios e mais alguns para contrariar a ciência, incluindo pagamentos a cientistas. O próprio Huff, que parecia honesto, foi comprado para escrever um livro intitulado Como Mentir com a Estatística do Tabaco, um livro favorável à indústria, que acabou por não sair. Os especialistas podem ser comprados, como mostram casos mais recentes de “investigadores” das alterações climáticas. E o que fazem as cegonhas no título do capítulo? A metáfora, que vem de Huff, serve para passar a mensagem de que correlação não é causalidade. Se contarmos o número de ninhos de cegonha no telhado de uma casa, podemos ter uma ideia do número de bebés, simplesmente porque as casas maiores, com mais chaminés, tendem a albergar mais gente, incluindo crianças.
Encontrei uma pequena falha no livro, quando a autora, embora com algum cuidado, atribui a Einstein a frase: “Nem tudo o que conta pode ser contado, e nem tudo o que pode ser contado conta”. Há numerosas frases apócrifas atribuídas ao célebre físico e esta nunca foi, de facto, dita por ele. Segundo Blauw, a frase estaria no gabinete de Einstein, mas a fonte mais antiga é um livro de sociologia de 1963, oito anos após a morte do sábio. Não nego que a frase seja boa…
Blauw, com apenas 33 anos, é jornalista na plataforma independente The Correspondent. Os assinantes escolhem quanto querem pagar, com a garantia de que não recebem fake news. Precisamos de mais autores como Blauw e mais organizações como The Correspondent para nos abrir os olhos para os números. Fala-se bastante de “contas certas”, mas o certo é que só se mostram e fazem “certas contas.”
A talentosa autora conclui (na p. 162; o livro não é grande): “Somos nós, seres humanos, quem inventou os números, e, como tal, também somos nós quem decide como os usamos.” Concordo a cem por cento.