“Quando passam os anos/ e as horas passam,/ é necessário a um homem encontrar algo/ onde a sua noite cante ou se ilumine”. Os versos são do poeta e crítico de arte catalão Juan Eduardo Cirlot, autor do “Diccionario de Símbolos”, e um dos nomes mais destacados de um círculo de artistas fascinados pelos mitos da Idade Média arcaica, e que com as suas investigações e obras ajudaram a imprimir um relevo moderno à tradição gótica de Barcelona. E é esse universo maldito que cria uma impressão de fundo tenebrosa nas páginas de “A Sombra do Vento”, romance fantástico que fez de Carlos Ruiz Zafón o espanhol mais lido no mundo depois de Cervantes. Esta frase, de tão repetida, acabaria por se tornar o cartão de visita do romancista espanhol que morreu na quarta-feira, na sua casa em Los Angeles, aos 55 anos. Perde a vida depois de ter iniciado há dois anos tratamentos para um cancro do cólon. É um desaparecimento que causa tristeza nesse território muito mais vasto que os do meio literário, pois os seus leitores eram legiões em todo o mundo, mas, tal como o autor da tetralogia Cemitério dos Livros Esquecidos, eram desses leitores discretos, atraídos pelo lado obscuro das antigas cidades europeias. Por seu lado, se a secreta vida dos livros sempre foi fonte inspiração e contexto para o universo criativo de Zafón, como sublinhou o El País, o regime gregário dos círculos literários, dos quais tinha uma péssima opinião: “O suposto mundinho literário é feito de 1% de literário e 99% de mundinho.” Depois de inaugurada em 2001, com “A Sombra do Vento”, a tetralogia que o tornou um fenómeno de vendas internacional, foi encerrada em 2016 com o “Labirinto dos Espíritos”. E como refere o El Mundo, só com a leitura do conjunto dos romances se reconhece a sofisticação na forma como este universo literário se integra, como se fosse uma “espécie de jogo de bonecas russas, de histórias escondidas dentro de outras histórias”. O diário destaca ainda o tom dos livros, que era “desesperado e nostálgico”. Curiosamente, numa entrevista que concedeu ao Sol, parece haver uma ligação à forma como se inspirou na topografia e história das cidades europeias e, particularmente, de Barcelona, que acaba por funcionar, mais do que um cenário, como a grande personagem da sua tetralogia: “Lisboa, Barcelona, Roma ou Paris são cidades que crescem a partir de um núcleo histórico e desenvolvem-se em anéis, como o tronco de uma árvore, onde o comércio e a habitação estão combinados, onde houve grandes catástrofes que arrasaram a cidade uma e outra vez mas a cidade volta a erguer-se, como se fossem várias cidades que se constroem umas em cima das outras.”
Nascido a 25 de setembro de 1964 em Bacelona, Ruiz Zafón passou a infância num apartamento próximo da basílica da Sagrada Família, este monumento comparece nos seus livros, povoados também de figuras e seres mitológicas como os dragões. Tendo começado a escrever na adolescência, antes a sua propensão artística levara-o a desenhar, e os dragões que coleccionava, eram um dos seus principais motivos, espicaçando-lhe a curiosidade, bem como as histórias de terror que ia lendo nessa horas em que, à porta de uma existência solitária, se pede à noite que cante ou ilumine.
Ruiz Zafón estudou com os jesuítas no colégio San Ignacio de Sarrià e, depois, interessado pelo cinema e pela produção audiovisual, primeiro matriculou-se em Ciências da Comunicação, mas passou os anos seguintes tropeçando entre vários cursos e faculdades sem concluir nenhum, dedicando-se sobretudo à escrita de romances infato-juvenis, acabando por arranjar um emprego numa agência de publicidade. Não demorou a revelar os seus talentos, e passou por agências como Dayax, Ogilvy o Tandem/DDB, chegando ao posto de director criativo quando decidiu largar o emprego para se dedicar inteiramente à escrita. Em 1992, começou a escrever o seu primeiro romance, “El príncipe de la niebla”, que conquistou um prémio de literatura juvenil, e foi com esse dinheiro que se mudou para Los Angeles, onde residia desde 1994 com a sua família. Nos EUA, ganhava dinheiro a escrever guiões para Hollywood, enquanto ia trabalhando no tempo que lhe sobrava nos romances. Como contou na entrevista dada ao Sol, “A Sombra do Vento” foi o seu quinto livro, e marcou um recomeço porque era o primeiro em que se livrava da etiqueta de autor infanto-juvenil. “Graças ao seu sucesso pude deixar de trabalhar como guionista e concentrar-me nos meus próprios livros. Comprei a minha liberdade, como Espártaco. Mas as mudanças não foram radicais, até porque o sucesso foi gradual. Na altura em que o livro foi publicado, eu tinha 34 ou 35 anos. Quando o sucesso chegou, já era quem sou. Continuei a fazer o que fazia, a viver como vivia. Não me mudou nem mudou o meu modo de vida. Simplesmente tenho mais independência.”
Traduzido em mais de 30 idiomas e publicado em mais de 40 países, o livro tornou-se o maior êxito de vendas mundial da narrativa espanhola, com mais de 10 milhões de exemplares vendidos. E além de numerosos prémios, em 2007, 81 escritores e críticos latino-americanos e espanhóis elegeram-no como um dos 100 livros de língua espanhola do último quarto de século. E Zafón reconheceu que o seu percurso, nomeadamente a sua passagem pela publicidade, e, sobretudo pelo guionismo, tiveram um impacto decisivo no desenvolvimento da sua abordagem romanesca. Numa entrevista que deu ao El País, em 2008, no auge do seu êxito mundial: “Muitos escritores, como Don DeLillo, trabalharam em publicidade, porque há aspectos em que faz fronteira com a literatura. Ali aprendes a ver a linguagem, as palavras como imagens. É um pouco como tantos desses romancistas que treinaram a mão no jornalismo. Michael Connelly, por exemplo, é um tipo cuja escrita me interessa muito, e cobria o que se passava nos tribunais em Los Angeles, uma formação que influenciou decisivamente a sua posterior obra literária. Mas o que tem maior impacto na minha obra e quase não é reconhecido é o trabalho que fiz para o mundo do cinema.”