Nesta hora caótica em que vivemos, a crítica negativa mostra-se a todos os títulos carente de vigência, e, contudo, no mercado vazio, no crepúsculo do tempo, está tudo a postos. Mas ninguém tem sequer a veleidade de esperar grande coisa nem dos que não estão, de algum modo, implicados e nem dos que estão ainda por tomar as suas posições. Por cá, e entre os literatos, cospem-se umas generalidades em tom acrimonioso, levanta-se amiúde um coro de vozes a lamentar a ausência de alguma figura que exiba a coragem das suas convicções, mas ai de quem der um passo em frente, quebrando a formação. É uma cultura atávica, em que os impulsos mais dignos acabam soterrados debaixo do gremialismo. E quando um desabafo mais corrosivo nos escapa, logo se é forçado a cumprir alguma penitência, provando que ainda se deseja o céu das letras. Há muito que não se acredita no encanto da matéria bruta. Tudo o que há é um molesto expediente, a prosa bonacheirona e os versos que ensaiam subtis variações ao misturar a solução de formol. Lêem-se as crónicas de uma era assoberbada pelo lado drástico dos acontecimentos, e, no entanto, olha-se para a produção literária e não se vê que ela se preocupe em incorporar em si o tempo, limitando-se a mudar a água a velhos simulacros, essas composições densas de poeira e tédio provinciano que passam por memórias e crónicas. Associa-se já o fenómeno literário a tudo o que sejam traços de artificialidade, modelos anacrónicos, sinais de morte. E nem ao passado ou à História temos direito. Apenas uma tosca colecção de fósseis para os quais se olha até perder interesse pelo passado.
Como notava Botho Strauss, “os escavadores das cidades antigas apenas trouxeram à luz um abandono, nunca um passado”. Ainda estamos em grande medida sujeitos àquela “doença histórica” diagnosticada faz já uns séculos, mas os sintomas não ajudam, antes nos distraem com o seu peso devastador, esterilizando e aniquilando as forças criativas.
Tudo é um memorial, tudo exalta algo que não está já, que se perdeu, para que nada que não surja como um eco possa inspirar alguma confiança a quem guarda as galerias deste labiríntico e infindável museu. Por aqui andamos, e para ir já aproveitando a malha que nos estende Pedro Eiras no seu livro de estreia enquanto poeta, “perdidos tropeçamos no eco dos passos”, e não sabemos se são os nossos ou os de outros que deram por si enredados nesta mesma teia muito antes ou há pouco. A radiação de fundo torna-se íntima do nosso sangue e não temos a certeza de estar acordados, e, se sim, desde quando.
A suspeita é a de que nos esmagaram comprimidos na sopa. Por isso a sensação que se tende a associar à cultura é a de se ver envolvido numa intriga nebulosa e retumbante, em que ninguém sabe ao certo o seu papel, mas vai procurando recordar-se de umas falas que vagamente decorou, introduzindo aqui e ali alguns contributos, improvisando timidamente e sob a pressão do metrónomo. Não é de estranhar, assim, que os autores que deslizam com ar mais confiante, sejam esses mais competentes na hora de deslocar-se mantendo a estopada de uma semelhança com uma história, estabelecendo a cada momento diálogos, envios, ironias, motejos. Uma luz bastarda cai sobre tudo aquilo. Tudo é um comentário, uma crónica que vem com falinhas mansas tentar seduzir os leitores abúlicos e indolentes que nos restam. E nisto parecem prestar provas para um lugar que mais valia deixar vago: o de sumo sacerdote das letras.
Tudo é um comentário um tanto ocioso, claramente recalcitrante, mas, para compensar, a coisa rima por todo o lado, não tanto ao nível dos sons, mais nas linhas com que se cose esta exacerbada visão da cultura como um fim em si mesmo, um êxtase indiscriminado, uma sensualidade pelos papiros. E com isto, para não vos fustigar mais, despeço-me do prólogo, passando ao livro que aqui nos traz, e que marca a estreia de Pedro Eiras no campo da poesia: “Inferno”.
I
Seguindo a arrumação em cantos da Divina Comédia, se Eiras aqui e ali brinca aos tercetos, não há grande rigor formal neste livro, e, no fundo, os versos servem mais de escala à “escassa prosa” que se arruma neles, tantos quebrados num efeito de fantasia em que a frase nos surge aos bocados, como quem clamasse um aforismo debaixo de água, expelindo as bolhas de ar num drama de afogado, que afinal se resolve quando se percebe que o escriba tem guelras, e que, por isso, aguenta bem o fôlego ali debaixo. E se não rima, no uso que faz da elipse, nesse modo de escandir os versos, areja formalmente frases que, de outro modo, não lembrariam mais que apontamentos irregulares, aludindo, sem ser demasiado específico, às condições do presente, a essa aflitiva visão das coisas que, por falta de imaginação, tende a fazer o relatório de uma situação terminal. No fundo, isto é o que acontece à nossa consciência que tende a organizar negativamente a sua ideia do futuro, sendo incapaz de ir além de uma certa paralisia verbal, tomando isso como um prenúncio de algo de seriamente lixado que está para se abater sobre nós. Assim, como notou num dos seus ensaios Joseph Brodsky, a insustentabilidade do futuro pode ser uma ficção mais fácil de aguentar do que a do presente, porque a nossa capacidade de previsão consegue ser bem mais destrutiva do que qualquer coisa que o futuro acabe por congeminar.
Por sua vez, o poeta italiano Eugenio Montale, numa colagem de anotações em prosa publicada com o título “Poeta no Nosso Tempo”, diz-nos que “o homem dos nossos dias herdou um sistema nervoso que não consegue lidar com as condições de vida presentes. E enquanto aguarda pelo nascimento do homem de amanhã, o homem de hoje reage às condições de vida que vê serem alteradas, mas não fazendo-lhes frente nem montando uma defesa contra os seus golpes, antes transformando-se em massa”. No fundo, e como vincou Elias Canetti, o que está por trás dessa concentração de indivíduos é o “medo de contacto”, o qual se inverte em formações de massa que crescem na mesma medida em que buscam a sua preservação, sentindo-se ameaçadas pelos outros e o desconhecido, gerando todas essas distâncias e protecções, que funcionam como a ritualização de um pânico social.
Esta falta de coragem para deter os instantes da sua vida, leva-o a encenar a sua crise num solilóquio em que se reveza entre o papel de um paciente que, não se sabe bem como, já apareceu num hospital de campanha, seguindo os acontecimentos consternado, como se fora o relato da guerra aos porcos que lhe chega através de um rádio a pilhas, e o papel do acusador, que aponta o dedo à civilização. Mas isto é uma ficção que dura só o tempo de poeta e leitor se darem conta de que a sua carne não é menos triste do que a da civilização. Ora, isto fornece-nos instrumentos de análise para essa forma de alienação em que, ao decompor-se da voz, um homem se vira para a elegia, organizando um vago protesto que se dissolve mais cedo ou mais tarde no lamento, nesse regime enlutado e de choraminguice (“Ovídio agora é arrumador de carros,/ está pele e osso, não tem onde/ cair morto”) que cai bem neste imenso funeral a que a época se afeiçoou, comportando-se como viúva não se sabe bem do quê, a não ser de uma falsa ideia de grandeza do passado, da própria cultura ocidental. Mas até isto é incerto, uma vez que, como aponta Eiras em “Inferno”, até o fim do mundo – esse magno efeito de retórica –, de tão recorrente, há muito caducou.
De acordo com a editora, este livro será o “primeiro volume de um tríptico que muito literalmente visita a obra de Dante Alighieri”, e que nos surge com um programa pomposo de nos oferecer “uma escatologia dos tempos modernos, uma visita às almas danadas de hoje através de um prisma eminentemente sociológico que reflecte e nos faz reflectir intensamente sobre a sociedade contemporânea, sem nunca perder de vista a empatia com o outro”… Mas para se perceber os processos usados nesta longa peça, que tanto pode estar do lado da acusação, como no momento seguinte compadecer-se das vítimas ou até com o réu, vale a pena ter em atenção o poema da página 54, em que o poeta contrapõe o minotauro ao algoritmo, e além daquela imagem de um Ovídio arrumador de carros, diz-nos que “todos os touros foram/ açambarcados,/ pendurados,/ esfolados vivos em nosso nome”, mas que, “por outro lado”, “o algoritmo/ conhece-te”. Assim, este traiçoeiro Leviatã da moderna era tecnológica que se entretece em todos os aspectos do nosso quotidiano, adquire uma omnipresença esmagadora para Deus e o mistério, mas também para o Acaso. Pois se nenhum lance de dados se mostrou à altura de o abolir, este modelo de processamento exaustivo e combinatório de todos os dados irá certamente levar à demolição dos grandes monumentos mentais do passado, e até, possivelmente, pôr em xeque noções como o livre-arbítrio ou a originalidade e a própria invenção artística. Ou talvez não. É sempre possível antecipar alguma outra catástrofe que, mais à frente, há-de fazer esta parecer, por comparação, risível. Assim, nada como uma visão de profundidade, até do inferno, para nos levar a pressentir como o que não se vislumbra é um fim para esta tenebrosa e, por vezes, admirável porra.
Mas vamos à ameaça mais à mão: o algoritmo enquanto fonte de ansiedades e, por isso, matéria de apreensão lírica: “ele sabe os nomes mais ínfimos,/ consultas, inquéritos, reservas e compras,/ as dúvidas nunca resolvidas,/ lentamente esquecidas,/ palavras-passe antigas,/ substituídas;// sabe as datas, os aniversários,/ mesmo o spam que nunca foi aberto,/ respostas, reencaminhamentos, o instante preciso/ de um equívoco,/ depois alguém morreu/ e não foste a tempo de pedir desculpa (…) sabe até às vísceras/ o caminho dos dedos na rede do corpo,/ o sentido da vida, o lema secreto,/ as três fobias mais populares, e ainda/ a grelha de detecção de sintomas de transtorno obsessivo-compulsivo,/ e ainda que não és um robot, porque/ identificas sinais de trânsito, caixas de correio, semáforos,/ sabe/ todos os teus gostos, desgostos, e o que te é/ indiferente, irrelevante, ofensivo ou já adquirido,// o esperanto dos teus sonhos,/ as tuas juras em vão,/ os mandamentos traídos,/ as confidências falando do túmulo (…) o algoritmo,/ como outrora Deus,/ sabe tudo,// e compreender-te-á/ melhor do que/ ninguém.”
Ao ler este poema, no seu encadeamento de temores, é-se quase conquistado pelo fervor das hipóteses lançadas, numa autópsia a um corpo inchado e que lembra a condição do próprio poema, que, depois de aberto e severamente castigado, se voltou a coser, tentando dar-se-lhe uma aparência de um resto ainda humano, mas ficando as marcas desses destratos, na forma discricionária com que se procedeu ao enjambement dos versos. Enquanto se corre “todo o pavio da saliva”, com as “luzes no dicionário, inundado” a permitirem ter-se um efeito de 360 graus nesta câmara das ansiedades contemporâneas, o poeta parece guiar-nos entre os carrosséis de uma feira de pesadelos de baixa intensidade, com as nauseantes voltas, o assédio das luzes e a vara com que somos cutucados por uma música aberrante. E aqui é irreprimível o desejo de citar Montale de novo, e aquele seu livro em que nos avisa de que “o conteúdo da arte está a diminuir da mesma forma que a diferença entre os indivíduos tem vindo a diminuir”.
Eiras parece muitas vezes dar sinal disto mesmo nos seus versos: “Mas quem tem uma morte própria,/ indivisa,/ que a guarde/ como à própria vida.” E, por outro lado, muitas vezes o poema exibe as marcas de uma arte também ela resignada, revirando-se entre os lençóis, apalpando antigas “fracturas, escoriações,/ um gatafunho nos pulsos”, com “o alarme da vergonha a meio do sono”. Uma arte que se contenta em transformar o vazio que temos hoje diante de nós numa afirmação paradoxal sobre a vida com o mero intuito de extrair disso um estilo que se possa identificar com uma voz pessoal. Assim, entre “verificar a cotação própria no juízo dos outros”, vai ajustando contas, saldando dívidas no claro-escuro que as frinchas da persiana do poema hoje vai permitindo, sem nunca voluntariar “datas, sítios, os nomes conjurados”, o que substitui a qualidade profética da grande poesia é uma forma de prudência (ou cálculo) também ela em linha com uma geração que se caracteriza por ao mesmo tempo que não parece acreditar em nada, vaga ainda numa forma de remorso beato, incapaz de abandonar de vez as convenções e cair num plano mais aventuroso. Assim, neste livro se vai representando a peça de teatro da má-consciência geral, dando voz à “litania de manchas”, pondo em cena “um coro de insónias”, mas persiste ainda a ressonância que se obtém da nave de uma igreja, seguindo o compasso estudado que permite inscrever uma espécie de salvaguarda (ou disclaimer), na linha da profissão de fé que Baruch de Spinoza inscreveu no primeiro capítulo do seu Tractatus Politicus: “Abstive-me de meter a ridículo as acções humanas, de ter pena delas ou odiá-las; só quis compreendê-las… Perante as paixões não vi vícios mas particulares virtudes…”
Este livro é vasto, suficientemente elaborado e, às vezes, gloriosamente confuso, admirável dentro dos seus propósitos. “E aqui moram os desesperados/ que aprenderam a respirar/ fora de água.// À primeira vista, são/ como qualquer pessoa:/ nos cafés, consultando/ telemóvel, trocos, linhas da fortuna,/ dando a vida de barato/ em troca de noites sem susto,/ menos passos à volta do poço,/ um esquecimento mais dócil./ Por dentro, retalham/ jugulares, retinas, o nome próprio/ num derrame de sonos.// O que para outros é turismo/ no País das Maravilhas/ aqui monta a instável morada/ do corpo, intervalada/ com estâncias de hospital, paredes altas,/ janelas altas, copas das árvores/ recortadas contra/ altas noites,/ gradeamentos, comprimidos, rondas entre/ quatro muros,/ sapatilhas sem atilhos.” Há ecos que nos são imensamente sugestivos e que não conseguimos, no entanto, identificar de imediato. Há um recapitular da matéria dada ao longo destas duas décadas da poesia portuguesa neste século, contando com o derrame de sonos que nos ficou do mal cicatrizado século anterior. Levamos algum tempo até retirar todas as consequências e perceber o peso de versos como estes: “Rodeia-te de citações/ como de assassinos:/ ninguém escreveu livros/ para te facilitar a vida,// sábia é a revoada da luz/ nos caixilhos,/ mas o teu corpo/ madruga para mentir,// na aura do banho, na pose/ da corrida, quando se coroa/ Espelho das Virtudes, mas com lepra secreta,/ fruta tocada,/ morte no raio-x,/ meia vanitas para bom/ entendedor.”
Depois, a partir de um determinado ponto, torna-se difícil desligar esta consciência de como as referências e as paráfrases são o elemento natural desta poesia. E se a tradição da poesia contemporânea vai sendo chamada para se ter uma ideia das feições que nos devolve o espelho deste tempo, e se, noutras investidas do autor, estes mesmos ingredientes apareciam a compor “um soufflé de aula mais ou menos indigesto”, aqui o “rumor de passos entre a sala de aula e as estantes da biblioteca” não se faz sentir de um tal modo que o poema se torne um regime puramente redundante. Por outro lado, ainda seria possível transcrever, palavra por palavra, a dúbia exaltação que George Steiner teceu ao reconhecer os méritos de John Barth, ao fazer a crítica do seu romance “Letters”. “Não há aqui uma página, meus senhores, indigna de exegese, glosa, notas de rodapé, hermenêutica, explicação, análise semiótica, comentário psico-histórico e seminário cabalístico. Que soem pandeiretas nas tocas da academia”, dado que os versos do professor Eiras “são centenas de ecos, como, o que é mais, estes ecos são muitas vezes dupla e triplamente cifrados”.
Quanto a apontar os perigos desta abordagem, o melhor é dar a palavra a Eiras: “Outra imagem, posso ir buscá-la/ à economia, ao ciclo da desvalorização:// porque o risco de usar as palavras/ nesta luta de horror vacui// é acordar um dia e dar conta/ de que já ninguém ouve, e nada significa// palavra alguma, não adianta gritar/ que os lobos descem a colina,// nada vale, nada fica, mesmo se apregoas a tua vida/ numa venda de garagem:// aparecem algumas pessoas,/ vasculham um bocado// no caixote dos monólogos,/ e acham tudo muito caro,// tudo muito inflacionado.”
E é isso, este é o risco. E apetece aditar ainda uma nota: benditos os lobos que ainda fazem essa atenção de descer a colina, de acumular a fome que faz com que a carne, por mais triste que seja, sobretudo depois de se terem lido todos os livros, ainda possa saciar algum vazio, sobretudo quando temperada pelos gritos.
II
Quando lemos um poema como o da página 69 (“Vive um demónio em mim que insiste:/ pára, não escrevas, desliga o computador,/ desaprende o caminho/ das pedras”…), cheia de astúcia, dessas precauções de quem se antecipa à crítica, levando água ao seu moinho, como quem não quer a coisa… Isso não pode deixar de provocar-nos tonturas quando o tentamos ligar a um autor que anda aí numa lufa-lufa, e que, a par da carreira académica, vai gerindo o que parece ser um gabinete de indústrias criativas. Alguém que, além de textos para essa infinidade de publicações com que o mundo académico finge ser um mundo fervilhante de ideias, se tem multiplicado entre a publicação de obras de ficção, teatro e ensaio, debruçando-se sobre música erudita e as obras dos mestres da pintura com igual desvelo, assinando ainda traduções de autores como Pascal Quignard ou Antonin Artaud, enquanto a sua própria obra é alvo de traduções lá fora. E não parece haver tantas goelas capazes de dar a dimensão deste vendaval criativo e que nos faz desconfiar de que este autor tem atrás de si uma sociedade de literatos apostada em lançar uma figura realmente heroica no plano das letras nacionais, capaz de uma síntese entre o trabalho de penetração crítica dos grandes textos, passando pela divulgação e estudo desses casos que fazem ainda supor que a literatura possa ser um empreendimento avassalador, e a criação de uma obra literária aberta, dialogante, cheia de uma erudição exuberante, de um fulgor enciclopédico, criando uma nova dimensão em que o colóquio que reúne especialistas e sumidades se cruzasse com a animação democrática dos santos populares.
Mas voltando àquele poema, e ao demónio que insiste com Eiras para que desligue o computador, apostado em roubar-nos o que poderá ser (o que já é) uma das mais fulgurantes obras literárias neste princípio de século, de resto ominoso…
“Para o grego havia no silêncio reserva,/ método, dúvida razoável,/ quiçá insólita forma/ de timidez;/ para ti haverá tortura: indolência,/ lento,/ lento adiamento,/ um torpor, ignávia & desídia,/ um não apetecer escrever, disfarçado de piedade/ pelas árvores sacrificadas,/ a inutilidade de tudo citando o Eclesiastes,/ um renunciar ascético, um inverter de prioridades,/ uma vergonha,/ no fundo uma grande vergonha,/ um medo,/ o teu medo,/ um medo só teu.”
A leitura destes versos lembrou-nos o ensaio que Benjamin dedica a Kafka nos dez anos da sua morte, e em particular do momento em que, recordando como, por testamento, este destinou a sua obra à destruição, e isto por não estar satisfeito com ela, considerando-a destinada ao fracasso, o ensaísta nos lembra das palavras finais d’O Processo: “Era como se a vergonha lhe devesse sobreviver.”
“A vergonha que corresponde em Kafka à ‘mais elementar pureza dos sentimentos’, é o seu mais forte gesto”, diz-nos Benjamin. “Mas tem uma dupla face: a vergonha, que é uma reacção íntima do indivíduo, reclama-se ao mesmo tempo de um significado social. A vergonha não é apenas aquela que sentimos diante dos outros mas também aquela que sentimos por eles.”
É neste ponto que a grande vergonha assumida por Pedro Eiras deveria reflectir-se não apenas sobre ele, mas sobre nós todos, e, no entanto, algo falha. Talvez porque o poeta que se reclama como alguém que escreve (ou deixa de escrever) desde o “fundo de uma grande vergonha” nos aparece como um grande fingidor, encenando uma recusa ou uma tortura que parece ser apenas outro expediente produtivo, alguém que toma o silêncio à conta de uma espécie de desastre, e que, por isso, está condenado a preenchê-lo dessas escalas de pequenos sons, borborigmos, de todo o azucrinante carnaval de inanidades que soam precisamente à ausência de um sentido que descanse o poeta das vozes que estavam lá antes como daquelas que virão depois.
Neste ponto, só nos resta pedir desculpa por esta “insolência”, talvez não tão “sagrada” que mereça a defesa estendida a qualquer autor por ter a “coragem” de ajudar a entupir os bueiros da poesia com mais algumas páginas de versos, teimando no maldito ofício de ler os outros, arriscando até a crítica negativa quando a massa acusa a agressão a um texto como um ataque ao frágil ego-sistema destas raízes que se entrelaçam debaixo do chão, no pânico de serem enterrados antes de terem dado a menor prova de alguma vez terem estado vivos. E é especialmente arriscado propor uma leitura de quem se arma da arrogância de publicar numa terra de onde os críticos foram expulsos sob os apupos e até a ocasional pedrada de um “coro armado”, desde o recurso a ameaças físicas (até à data todas por cumprir) até cartas para o jornal.
E isto vem a propósito? Vem, se tivermos em conta a vaidade de um autor que, ao estrear-se em verso, ao largar a flotilha nos bueiros, conclama: “e agora vai, livro, lançado aos cães,/ aos que guardam o território, e três vezes ladram/ a quem salta/ o portão/ imaginário”. E note-se que isto, dito sem o gaguejo de ir escandindo a frase talvez provocasse um certo pudor. E senão no autor pelo menos no leitor, uma certa vergonha. Infelizmente, nos versos é que a pluma mais se enche deste regime de frivolidade empertigada, e, assim, cumprindo-nos reagir em nome dos cães – coisa que, de resto, nesta terra ninguém se sente incumbido de fazer –, o que se nos oferece dizer é isto: quem dera houvesse realmente algo que guardar, algum portão mesmo que imaginário, e nem que fosse só uma risca no chão. Guardá-lo desse salto (também ele, note-se, suposto, imaginário) ou até de algum assalto. Já seria motivo de entusiasmo para os cães – mas que digo eu, cães, se não vislumbro companhia alguma – ter no perímetro um rabo por esfolar. Pobre diabo de mim obrigado também a imaginar os rabos num país em que, com toda a “frontalidade” dos nossos poetas, o que ficou a faltar são traseiros. Tudo só tem frente, não há verso.
De resto, sempre tem graça que seja um autor com uma impecável folha de serviços, com prémios, traduções lá fora, viagens subsidiadas, colóquios à fartazana, tem graça ouvir as suas queixas sobre um meio que, aparentemente, tão ingratamente o tem tratado. Afinal, como se pode entender as queixas deste poeta que ainda não se lhe arrancou a película de plástico de um artigo por estrear já nos vem ele queixar-se de “uma espécie de tribunal mais ou menos assumido, quer dizer”… Tribunal! Mas onde? Se assim for, além de toga exijo um oficial para me ajudar com as pastas e um estipêndio que dê pelo menos para pagar os livros que as editoras até me recusam. Mas se o leitor duvida que aqui é o crítico a delirar, leia estes versos do poeta estreante: “longa história de caninos agudos,/ vigilância das coutadas, dos nomes/ conquistados prémio a prémio, traduções,/ viagens subsidiadas/ colunas semanais (…) de vingança soberana e impune,/ quantas estrelas em cinco,/ e uma pensão honrosa,/ receberás tença”.
Veja-se bem a coisa. Está preocupado com as estrelas, e eu não sei como fazer, se nem estrelas tenho para lhe dar. Isso é lá com o outro, o do jornal do regime, que o habituou mal, vindo a correr garantir que ele estava no selecto número de cardeais apontados à eleição de supremo sacerdote das letras.
No meio destas atrapalhações, com os poetas a terem adquirido o péssimo hábito de inscrever nos livros as instruções sobre o modo muito particular de se lhes pegar, as indicações para o programa da máquina de recensear dos agentes de divulgação, antecipando assim a sua recepção, prendendo nos versos badalos com aquilo que pretendem que deles se diga, no meio destas coisas, tem graça dar com um poeta que vai ao ponto de gravar nos versos as frases motivacionais que repete para si mesmo, talvez confiante de que, assim, possa fazer do leitor um cúmplice, que venha depois defender-lhe a honra.
Mas defendê-la de quem? Do crítico não será, porque esse, de acordo com o poeta, não passa de um “exímio burocrata, a tomar nota/ das sombras mal colocadas”. Mas se não é do crítico que é preciso defendê-lo, então, de quem mais poderá ser? Pois do próprio autor: “porque sabes que és o teu pior inimigo, e que te deves vencer a ti mesmo?”, escreve Eiras, tentando talvez convencer-nos de que estamos a mais. E ali o vemos “ensaiando// uma peça de acto único,/ tantos anos em cartaz:/ o ponto já morreu há muito,/ vamos bater texto toda a noite;// pois só um louco pode dizer/ que te ama, ó eternidade”.
III
Com todos estes equívocos e embirrações patológicas, ou talvez até graças a eles, este livro não deixa de ser um dos mais notáveis testemunhos do drama de dissolução que estamos a viver colectivamente, e que se confirma sempre que, por um momento, algum de nós se vê impedido de “aceder à rede, verificar// se continuas googlável,/ quer dizer,/ real”. Estes suores de que nos vamos ensopando acabam por ser a água da cozedura das nossas paranoias, essas que se alimentam ao “leres os títulos nos jornais/ com a moeda sob a língua”, ou darmos uns pelos outros a confessar: “estamos a arder/ estamos todos a arder em fogo lento/, brandas chamas, a fazer render desculpas,/ histórias, e nem sequer há ninguém// a quem pedir misericórdia”. E é neste ponto que a ideia do fim do mundo mais se parece com uma utopia, a última que nos irá restar quando até a noção de realidade for dada como obsoleta. A partir daí, o Inferno será algo como a sensação de se estar trancado com o mundo inteiro, a sensação de que o que acontece algures chega, de uma forma ou de outra, ao conhecimento de todos.
Como escreveu Saul Bellow, um mundo sombrio ergue vagas capazes de atingir as extremidades nervosas de qualquer pessoa mesmo nos cantos mais remotos da Terra. Isto leva-nos a pensar que, para se ter paz, será preciso sufocar o mundo.
Ao mesmo tempo, e concorrendo com essa sensação, está o desejo de sobreviver ao pior cenário que o mundo consiga produzir. “Cada um de nós tem um velho professor/ de latim/ vagueando/ pelos corredores, rememorando/ regências de verbos, excepções à regra,/ a elegante cesura/ dum hexâmetro.// Cada qual, quando pensa no Hades/ (longas tardes de domingo,/ a chuva lá fora), lembra-se/ da declinação dos mortos,/ da sombria peregrinação.// Elias Canetti escreveu num ensaio que os vivos,/ perante o corpo do morto, vivem/ um sentimento de triunfo;/ insconscientemente dizem: ‘venci-te:/ tu morreste,/ eu estou vivo’.// Em todo o trabalho de luto,/ um selvagem mede forças com/ a sua própria sombra. E só vence/ quando é vencido.”
Há, de facto, poemas bastante bons neste livro. E há, sobretudo, passagens marcantes, momentos de clareza que nos atingem com uma razão animadora num tempo em que, por vezes, chegamos a pensar que tudo quanto nos resta é resignarmo-nos a “fazer a crónica da peste”. “Como seria bom/ generalizar, usar expressões do género: ‘hoje em dia toda a gente…’,/ ou ‘isto já não é como dantes…’,/ ou até ‘a juventude…’,/ truques ergonómicos para/ calar esta voz obcecada/ pelas excepções, pelo cromatismo/ das palavras, esta atenção/ ao detalhe, esta tortura de um deus/ (quod era demonstrandum)/ cruel.”
Nos seus pontos mais luminosos, há nesta obra uma inteligência firme, um diagnóstico certeiro e um mostrar dos dentes que lembra o que José Miguel Silva andou a fazer desde a sua estreia, em 1995, até se ter decidido a entregar à reforma a pena que assinou alguns dos mais lúcidos e ferozes libelos que se escreveram nesta língua; e fê-lo por considerar que a situação é tão má que os versos já não dão conta do recado. Ora, o poema da página 91, de que já citámos alguns versos, e que é um dos melhores do livro, é também um dos que mais endividado se mostra com o registo impetuoso e sarcástico, hábil e graciosamente escarnecedor a que o autor de “Movimentos no Escuro” nos habituou.
Vejam-se estes versos do poema de Eiras: “As utopias têm a mania/ da impaciência, e nunca é cedo/ para o paraíso publicitado// em suaves prestações./ O nosso crime tem sempre/ desculpas, a distracção dos outros/ é imperdoável.// Dito isto, conheço/ processos terríveis, erros jurídicos,/ arrependimentos tardios/ à hora da morte (…) Vamos lá a ver: bem podes/ vestir saco, encher o cabelo de terra,/ porque morreram as tuas reses/ e a provisão dos teus filhos,// gritando Porquê Senhor Porquê/ do fundo do poço. Para teu/ conforto, há rios de lamentações/ a servir de minuta;// mas antes de cansares a voz, pensa/ se esta praga sensacional/ não responde a uma culpa antiga/ esquecida,// pois os prazos são caprichosos/ no equilíbrio moral dos tempos,/ e as dívidas não prescrevem:/ somam juros;// no teu quarto, à meia-noite, entram cobradores/ lembrando aquele ‘posso ficar a dever?’/ que se multiplicou, e impressiona agora/ na capa da Forbes.”
Versos como estes mostram-nos que esta voz é a de alguém que não perdeu uma aula, sentando-se na fila da frente, passando rigorosamente os apontamentos. Mas se consegue captar as entoações e fazer variações a partir de algumas das vozes mais significativas da poesia portuguesa das últimas décadas, não é para já muito fácil reconhecer as propriedades em que esta poesia se autonomiza, se não talvez por essa arte da imitação. Como Eiras escreve: “As minhas palavras são emprestadas; depois de jejuar provo o meu sangue e não tem sabor.”
Depois desta admissão, apressa-se a ensaiar uma defesa: “Talvez ninguém possa provar o seu próprio sabor, dizem-me, talvez o sal não saiba que é salgado, o mel áspero, e o sangue arrependido. Talvez nos espelhos sejamos todos transparentes e sem peso.”
Depois de um arranque mais cru, no último parágrafo Eiras já parece embalado na embriaguez de uma renovada auto-confiança e o que escreve volta a adquirir aquele tom motivacional a que nos referimos antes: “Talvez sejamos sem peso, mas ganhamos o peso do que dizemos e conforme a cerimónia afinamos o nosso rigor. Não terei outra identidade senão a do jogador sempre díspar, mas nesse jogo dia a dia me invento.”
Há, portanto, neste exercício um modo de experimentar vozes e um desempenho camaleónico de alguém que representa de forma mais ou menos inconsciente um panorama da nova poesia portuguesa. E tal como encontramos aproximações a José Miguel Silva ou a Ana Paula Inácio, nalguns embalos mais lúdicos, mais arriscados ao nível expressivo e no recurso à metáfora, sentimos a presença de Daniel Jonas por aqui, como, em algumas meditações, ouvimos o falho assobio de um varredor de cinzas à porta dos fornos do século passado, e nesse lirismo decaído damos pela expressão fria de Luís Quintais e de outros rostos que vão pousando neste espelho. São às vezes traços mais ou menos identificáveis e que tornam este jogo de quem se inventa aquecendo o sangue entre reflexos bem mais cativante para o leitor que tem uma noção dos caminhos que a poesia portuguesa mais recente vem explorando.
Com isto que se disse, a tardia estreia poética de Pedro Eiras assume uma distinta virtude quando boa parte dos poetas não apenas não se leem entre si como, no excesso referencial que é característico da poesia contemporânea, muitas vezes não sabem mais do que dirigir piropos aos grandes vultos, fingindo um à-vontade face à tradição quando esta na verdade se lhes esquiva quase nauseada. Isto dito, é importante destacar uma estreia que reflecte alguma coisa, que tem um olhar voltado para trás e a capacidade de causar no leitor aquela impressão de perplexidade que experimentamos quando, na rua, nos voltamos para trás e vemos o caminho percorrido, a vida transtornada e, ao mesmo tempo, indiferente. É uma fuga rectílinea que nos diz que o tempo pode demorar muito a cair em si, a dar-se conta do que fez. Afinal, olhar para trás não é muito diferente de olhar-se ao espelho, e o mais estranho é que, quando o fazemos, o nosso reflexo perde-se cada vez mais no olhar de um estranho. E se isto chega a causar-nos algum desconforto é porque ele não está ali a devolver-nos o nosso olhar mas parece enfrentar o nada. Nem encara o futuro nem parece perscrutar a sua interioridade. Simplesmente, exibe a nudez de um morto, e a sua sombra projecta sobre nós um vazio aterrador.
Infelizmente, o pior poema do livro é o último, aquele em que o autor resolve trancar com o ferrolho as suas divagações infernais, e vira-se deste vez para o seu anjo, agradecendo-lhe o silêncio, “quando poderias/ ter corrigido os meus erros;/ como aos profetas e aos loucos,/ habitar a minha boca,/ vestir a minha mão como uma luva, e escrever/ a perfeição”.
É um final insuportavelmente beato para um livro que, aqui e ali, além de beberricar nos cálices dos mitos para depois se pôr a gargarejar, se não blasfema contra Deus, chega a ameaçar profanar o improfanável. É triste, assim, que tudo acabe com um pedido de desculpas. Mas é também natural, uma vez que, no fim de contas, e ao contrário de Virgílio, que, ao conduzir Dante ao inferno, lhe confessa que nunca entrará no céu – o que leva Dante a chamar-lhe mestre e senhor, e isto, segundo Borges, “quer para demonstrar que aquela confissão não fez diminuir o seu afecto, quer porque, ao sabê-lo perdido, mais o ama” –, Eiras, por seu lado, parece convencido de que nunca entrará no Inferno, e, de algum modo, sabe que não lhe é dado sequer perscrutá-lo, a não ser enquanto uma ficção um tanto inócua, garatujando umas generalidades ansiosas mas sem chegar a molhar os pés nas águas do Aqueronte, preferindo ficar a salvo nesses territórios que são delimitados por neles nenhum grito poder deixar de ser ouvido por algum ser entre a hierarquia dos anjos.