Do marxismo cultural, ou conselhos de leitura


Claro que quem tem falado em marxismo cultural se meteu, por imprevidência e inadvertência, num campo minado pela esquerda onde cada passo faz detonar uma mina ideológica.


Algumas pessoas, e algumas com responsabilidades políticas, falaram nos últimos tempos em marxismo cultural, referindo-se por aí a um “ar do tempo” de esquerda que permeia e enforma a cultura política no Ocidente.

A reação da esquerda não se fez esperar e foi violenta: desde insultos como “tontos” ou “desqualificados” até intervenções mais didáticas e supostamente informadas de José Pacheco Pereira, comentador televisivo e biógrafo do estalinista Cunhal, e da fundadora das Brigadas Revolucionárias e proponente da luta armada contra o “fascismo”, Isabel do Carmo, médica e revolucionária de profissão.

Isabel do Carmo, na toada de que quem fala em marxismo cultural é apenas ignorante, aconselha a ler Marx, Engels e Gramsci aos que impertinentemente se referem ao tema. São leituras curiosas, mas reveladoras: dois teóricos barbudos dos primórdios do séc. xix e um fundador do Partido Comunista Italiano, nos primórdios do séc. xx…

Talvez, dos três, o que melhor corresponda à mundivisão de Isabel do Carmo seja Engels, suponho que por ter escrito A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, em que, nas palavras da própria, “a existência de uma violência coletiva e da formação de um aparelho de repressão é associada à criação de um excedente de produção e de uma divisão de classes”.

Talvez isto revele a estreiteza de vistas de Isabel do Carmo, reduzida à leitura insuportavelmente chata e inútil de teóricos de um modelo social e político que se revelou desastroso e desumano.

Eu aconselhá-la-ia a ler outras coisas, por exemplo, o Arquipélago de Gulag, de Alexandre Soljenitsine, que descreve bem as consequências práticas ao nível da liberdade individual dos pressupostos teóricos das leituras por ela aconselhadas.

Numa veia mais literária e para nos mantermos nos prémios Nobel da Literatura, podia ler o Doutor Jivago, de Boris Pasternak, que nos conta em formato épico a história horrorosa da ascensão dos bolcheviques na Rússia.

Mas podia ler uma outra versão da mesma história sinistra em Uma Saga Moscovita, de Vassili Axionov, e, se ainda ficasse com dúvidas, Vida e Destino, de Vassili Grossman, que nos conta da forma mais tocante o horror para o povo comum do choque de titãs entre dois totalitarismos desumanos, o comunismo soviético e o nazismo.

Para quem pudesse ter dúvidas, convém ler o prefácio de Vida e Destino, a mesma história do Doutor Jivago ou do Arquipélago de Gulag: “O manuscrito de Vida e Destino foi inicialmente confiscado e proibido pela KGB, em 1960, e Grossman não viveu a tempo de vê-lo publicado. Contrabandeado para fora da União Soviética uma década depois, o romance foi por fim publicado na Europa e nos Estados Unidos no início dos anos 1980. Só foi lançado na Rússia em 1988” (citação do site do editor).

É toda uma história de liberdade…

Interrogo-me porque é que estes censores não aconselham a ler, por exemplo, Friedrich Hayek, O Caminho da Servidão, uma obra sobre a liberdade coletiva e individual, escrita por um economista Prémio Nobel da Economia, e bem mais relevante para o mundo em que vivemos.

Hayek e os seus companheiros da Escola de Economia Austríaca fundaram a Sociedade Mont Pèlerin, cujo pressuposto de partida era que a soberania económica dos Estados fosse constrangida por acordos supranacionais que protegessem a liberdade dos mercados. Desta ideia lançada em 1947, depois da ii Guerra Mundial, nasceu o GATT, berço da globalização e da Comunidade Económica Europeia, entre outros.

Eu sei, eu sei, não casa com as Brigadas Revolucionárias nem com os dogmas do Partido Comunista, mas, lá está, nas leituras que se aconselham vai toda a nossa visão do mundo.

É curioso que a visão do mundo de José Pacheco Pereira ou Isabel do Carmo os levem a aconselhar a ler a quem fala em marxismo cultural os expoentes teóricos da mais nociva e assassina doutrina que surgiu à face da Terra: o comunismo.

Claro que quem tem falado em marxismo cultural se meteu, por imprevidência e inadvertência, num campo minado pela esquerda onde cada passo faz detonar uma mina ideológica.

Se fizerem o exercício de pesquisar “marxismo cultural” no Google, verificarão que as respostas são quase todas de sites brasileiros de esquerda, em que, no mínimo, a expressão é conotada com uma teoria da conspiração (portanto, inexistente) que consistiria em que se atribuíssem à esquerda marxista os propósitos de minar os fundamentos culturais do Ocidente para o entregar, assim, desarmado aos seus inimigos.

Posto assim, parece um bocadinho ridículo, mas é um tema que apoquenta muito a esquerda brasileira porque os adeptos de Bolsonaro falam nisso. Foi neste campo minado que quem fala em marxismo cultural se meteu.

Eu sei que se referem a outra coisa: ao conjunto de silogismos martelados na opinião pública ao longo de décadas que consiste em equacionar fascismo com neoliberalismo, neoliberalismo com capitalismo e este com “selvagem”, todos estes com “Ocidente” e este com supremacia branca, opressão de minorias (entre as quais, as mulheres), e todos com ideologia de género. Em suma, quem está contra o dogma do aquecimento global ou defende o “heteropatriarcado” é fascista, e, logo, tudo o resto, e o mesmo se diga de qualquer dos outros conceitos.

Este conjunto de ideias, umas mais, outras menos vagas, permeiam e esvaem-se pelos mil circuitos informativos da nossa sociedade como ideias adquiridas e verdades incontornáveis. Isso é que é o marxismo cultural: um conjunto de pseudoverdades adquiridas que põem continuamente em causa e apodam de fascista quem defenda o contrário ou sequer emita dúvidas.

É este adquirido cultural que permite que, sem pestanejar, uma estudante de 19 anos, filha de um expoente do Bloco de Esquerda, publique um post com a fotografia de cinco fascistas italianos mortos e pendurados nos ferros de um açougue, entre os quais Benito Mussolini e a sua amante, Clara Petacci, sob a epígrafe “ANTIFA”. Cada um que tire as suas conclusões…

Ou que permite a Mariana Mortágua, deputada do Bloco, propor, sem que haja reações, que se vá buscar dinheiro a “quem o acumula”, pretendendo por aí dizer quem acumulou alguma coisa de seu, ou seja, quem defende a propriedade privada; mas, como dizem os próceres do marxismo, a propriedade privada é a raiz de todo o mal e da violência… como ensinou Engels.

Ou que leva uma manifestação contra o racismo, uma causa em que todos podemos rever-nos, a transformar-se numa manifestação contra o capitalismo.

A liberdade é uma coisa frágil, sempre em risco, que carece de defesa permanente, nunca podendo ser dada por adquirida, e tem muitos inimigos, entre os quais estes Catões da “ignorância” daqueles que denunciam o marxismo cultural.

É por isso que estas tomadas de posição são importantes, porque só numa sociedade civil esclarecida podem medrar a liberdade e a democracia.

 

Ex-secretário de Estado da Justiça

Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”