Herberto Helder. Visões cheias de alegria bárbara

Herberto Helder. Visões cheias de alegria bárbara


Considerado o mais autobiográfico dos livros do poeta, Apresentação do Rosto regressou às livrarias e traz-nos um autor que não deixou descendência e que corta com um certo cansaço que se faz sentir em parte da produção poética contemporânea 


A história é relativamente conhecida: censurado pelo Estado Novo aquando da sua saída em 1968, Apresentação do Rosto de Herberto Helder foi, posteriormente, desmembrado pelo autor (partes transitaram para Photomaton & Vox, por exemplo), desaparecendo da bibliografia – tratando-se de um livro que se reclama da autobiografia, mesmo com todas as precauções que é necessário tomar quando se trata de Herberto Helder, este desmembramento do autobiográfico tem algumas ressonâncias com o seu gesto poético. É certo que o livro não desapareceu de todo. Surgindo por vezes em alfarrabistas, como, aliás, grande parte dos livros já esgotados de Herberto Helder, circulando de forma mais ou menos ilegal, em fotocópias ou em formato digital, Apresentação do Rosto permaneceu marginalmente acessível para os poucos que, por obrigação ou por motivos mais obscuros, se colocam no rasto desses livros – de Herberto, mas não só – cujo desaparecimento equivale a uma falta que economia alguma consegue subsumir. A presente edição talvez ficasse a ganhar se tivesse integrado de alguma forma as anotações que constam do exemplar de Herberto Helder – e que não surgem, segundo a nota que a acompanha, por “não estabelecerem uma nova organização do livro”. Apesar disso, o facto de Apresentação do Rosto ter esta história atribulada, entre o desmembramento e a censura, faz com que seja ao mesmo tempo objeto de história, permitindo ver o que é que passa para os livros seguintes de Herberto Helder, a recorrência de certas imagens ao longo de toda a obra, mas ganha, também, uma certa atualidade intempestiva – e é preciso um esforço, muitas das vezes, para não enterrar este tipo de livros no saber, por vezes sumptuoso, de antiquário.

Pouco há, efetivamente, de propriamente autobiográfico em Apresentação do Rosto. Viagens, um ou outro lugar que podemos julgar reconhecer, o recurso à memória da infância, mas nada que permita ao “engenheiro da fábula” “maquinar o seu empenho de aventura humana” mostrando-nos que “aqui fica uma rua, aqui uma ponte, aqui um parque, aqui a mancha cerrada de sentimentos e ideias com o nome de bairro de gente”. À autobiografia, com os seus protocolos de escrita reconhecíveis, Herberto Helder prefere uma inquirição rigorosa, rítmica, a esses espaços desertos (“Este lugar não existe, fica na Arábia Saudita, no deserto”), esses lugares de uma “violenta anunciação”, cheios de uma “beleza tenebrosa”, de uma “alegria bárbara”, “num exílio de espanto e beleza brusca”. O objetivo talvez passe por aquele “idioma cada vez mais estrangeiro” de que fala, cheio de imagens resgatadas a uma noite anterior às palavras (“Mas a noite é imensa, quer dizer: a noite do lugar e do tempo, a noite da nossa solidão”); ou, então, por aquele silêncio a que se promete depois de Apresentação do Rosto, silêncio interior a este livro, bastante presente ao longo dele mas, também, mais ou menos irónico, que não remete para o lado económico da vida (uma autobiografia para selar a obra) mas para esse lugar onde “um pequeno órgão palpita algures, vibra rapidamente, e amortece-se, e desaparece”. Busca por esse “interior mais escuro” que só pode ter como fim o silêncio – ao qual se tenta escapar, trazendo de lá essa “ciência mortal”, “pequena ciência”, de “imagens nocturnas e diuturnas”.

Talvez não seja por acaso, aliás, que Herberto Helder recorre a dois motivos – um deles ligado a uma certa tradição mística – que dão conta dessa viagem a uma terra “cheia de coisas vivas e inúteis, coisas irrompentes, palpitantes” de onde se chega sempre de “olhos queimados”; e é por isso, porque Herberto Helder encontra um mundo feito de forças inumanas, puras e violentas, como afirma, um mundo onde a sua escrita vai habitar, que ele só pode chegar de “olhos queimados”, trazendo consigo uma “tumultuosa, desavinda multidão de metáforas encerradas numa única metáfora” com “imagens cheias de patas”. Um desses motivos, com uma história já longa, é essa referência ao deserto, onde, no quinto dia – há aqui claras ressonâncias com a tradição bíblica, com Herberto Helder a reivindicar-se de um poder de criação -, vai lançar “às areias, a toda a volta da casa, até onde podia, todas aquelas sementes que não eram de cravos, nem de trigo, nem de algodão”, mas “cabeças de crianças do tamanho de cabeças de crianças – vivas, oscilantes, latejantes sobre o pedúnculo que irrompia do deserto”.

“E então elas começaram a cantar – na minha noite./ Eu estava sentado na cadeira, no alpendre, na casa – e as vozes levantaram-se, eram altas, altas, inocentes, terríveis, cada vez mais belas, mais sufocantes./ No deserto./ O meu coração nunca mais dormiria.”

Semear no deserto, na solidão desse espaço árido pouco dado a que qualquer coisa nasça dele e colher um canto, “na minha noite”, onde a lei parece ser: quanto mais inocente mais terrível, “linguagem da dádiva e crueldade”, quanto mais belo mais sufocante – e tanto “terrível” como “inocente” têm uma função central em Apresentação do Rosto, juntando-se até à mais completa indistinção: “Amarrado à noite, eu canto com um lírio negro sobre a boca./ Com a lepra na boca, com a lepra nas mãos”.

O outro motivo já não é o deserto, mas a caça, que comparece na sua “alegria bárbara” (“Existem aqui o desígnio, o jogo, o ritual – e a alegria bárbara e o primitivo pânico da caça?”) e cujo segredo, para Herberto Helder, reside nessa confusão que se estabelece entre caçador e caçado, entre perseguidor e perseguido (“E isto significa: o outro é agora o perseguidor”) ao ponto de aquele que persegue se ver vergado perante essas “forças superiores” que lhe confere o sentido do seu movimento. Trocando de lugar, vendo-se a si mesmo ou encontrando esse espaço de partilha com o animal, o caçador tem esse amor cruel que é também aquele da infância.

“Armam-se então de inexaurível paciência, uma secreta humildade para com as forças superiores que demarcam e condicionam o teor das suas próprias regras./ Decerto que todas estas regras se elaboram e exercem na inspiração do terrível, mas o terrível possui a sua doçura e lírica castidade, o seu transporte dadivoso./ As crianças amam as lagartixas, com uma crueldade cheia de paciência e pormenorizada paixão.”

Caçar é chegar àquele ponto em que se troca de lugar com o que se persegue, em que o crime – que é aquele do conhecimento e do amor (“que são uma só coisa, isso: que o crime e o conhecimento são uma só coisa: uma vocação”) – paga a sua dádiva através dessa união “pela qual homem e bichos se conhecem, fascinados”. Não andamos longe, nesta imagem da caça, do que Herberto Helder dirá décadas mais tarde, em Servidões, onde as mãos se enterram no que há de mais orgânico e retornam, “calçados de luvas sangrentas, vivas”, de um “mundo de imagens orgânicas” trazendo consigo essa “beleza tenebrosa”, canto tecido de imagens.

“Trouxeram uma vez um porco selvagem caçado nas serras e atiraram-no para cima da mesa da cozinha, uma longa mesa coberta de zinco. Abriram-no de alto a baixo com enormes facalhões e cutelos, o sangue corria por todos os lados, meteram as mãos e os antebraços na massa vermelha, e eles reapareceram depois como calçados de luvas sangrentas, vivas (…) de tudo aquilo subia um perfume agudo, embriagador, doloroso”.

Não são essas luvas sangrentas de Servidões, mas há uma mancha branca que vai aparecer a dada altura, que vai começar por apanhar a mão direita (“nobre instrumento da obra e está ligada superiormente ao espírito”), trocando a “mão humanista” por uma outra, “dramática, proibida entre os homens”, cheia de uma “insólita nobreza, outra, uma nobreza nova, terrível” e que, por fim, vai capturar todo o corpo: “Despi-me todo, e eu era branco e repugnante (…) E então vi em mim, no meio da bebedeira, certa beleza tenebrosa, uma maldição pela qual me apaixonei”.

Que o poeta reclame para si este lugar excluído (“Transformara-me num réptil branco e inconsistente”), que Apresentação do Rosto se jogue nesta pesquisa intensa de onde traz as “imagens turbulentas, a vertigem do silêncio interior”, dá conta do fôlego imenso, da “inclinação barroca do espírito” – como afirma numa entrevista de 1964 -, que esta poesia transporta. São imagens – “turbulentas”, “cheias de patas”, que obrigam a língua a descobrir novas potencialidades -, um “idioma cada vez mais estrangeiro” que se mede a cada passo com esse mundo que é apenas crueldade, dádiva, tão inocente quanto terrível. Mas isto apenas na condição de se transformar num “lobo esfaimado”, tendo “Toda a esfaimada doçura de um lobo”.

E talvez seja por aqui que Apresentação do Rosto adquire uma atualidade intempestiva. Quando um certo cansaço se faz sentir em parte da produção poética contemporânea – e este teria de ser entendido a partir de uma palavra alemã de difícil tradução, designando uma forma de pensar o mundo, mas não só -, Herberto Helder, que, neste domínio, parece não ter deixado descendência, vem mostrar como se constrói esse “esfaimada doçura de um lobo”, como ele habita uma paisagem deserta e como se mede face a ela, como resgata desse fundo móvel das coisas uma multidão de imagens que são sempre inocentes e terríveis, cheias da “alegria bárbara”. É um animal de grande porte, que dá à língua uns pulmões imensos.