God bless America!


O domínio colonial criou, na prática, a tese racial, estabelecendo mesmo uma escala de desenvolvimento, com os negros no fim da tabela.


“I, too, sing America.
I am the darker brother.
They send me to eat in the kitchen
When company comes,
But I laugh, and I eat well,
And grow strong.”

Langston Hughes, “Epilogue”

 

Os Estados Unidos da América vivem mais uma grave crise provocada por motivos étnicos, depois de um polícia branco ter asfixiado até à morte um cidadão negro.

Porque falo de etnia e não de raça? Porque o preconceito tem exatamente origem na ficção de que a humanidade está dividida em raças, tese que nos acompanhou até há muito pouco tempo.

Na verdade, existe apenas uma raça. Apesar das diferenças físicas, a genética entre um ser humano branco e um negro, por exemplo, difere em 0,1%.

Qual é, então, a raiz do problema? O domínio secular de povos europeus sobre povos de outros continentes. No que respeita aos povos de África, acresce o facto de terem sido escravizados e espalhados pelo continente americano, a partir do séc. xvi até ao séc. xix.

Foram incluídos como pura mercadoria no denominado comércio triangular: Europa, produtos manufaturados; África, escravos; América, produtos das plantações para a Europa.

O domínio colonial criou, na prática, a tese racial, estabelecendo mesmo uma escala de desenvolvimento, com os negros no fim da tabela.

Nos Estados Unidos da América, nascidos no séc. xviii, os escravos negros garantiram a produção das grandes plantações dos estados do Sul.

Com a vitória do Norte na Guerra Civil de 1861-65, os escravos foram libertados, mas a discriminação terminou? Claro que não.

Nos estados do Sul foram de imediato promulgadas leis segregacionistas, impedindo casamentos entre brancos e negros e ditando a sua separação em transportes públicos, hotéis, restaurantes, teatros e outros locais.

É importante recordar que só em 1965, nos estados do Sul, os negros conquistaram o direito de voto.

Esta é a realidade, nua e crua, na tão proclamada “terra de todas as oportunidades”, onde cerca de 47 milhões de cidadãos não têm qualquer seguro de saúde, essencial para garantir serviços médicos com um mínimo de qualidade num país sem um serviço público de saúde.

Os negros representam cerca de 12% da população dos Estados Unidos. Há hoje mais negros na prisão do que escravos em 1850, segundo um estudo da socióloga da Universidade do Ohio Michelle Alexander.

Esta é a América de Donald Trump e de Derek Chauvin, o polícia que matou um cidadão negro por asfixia, mas é também o país de Toni Morrison, prémio Nobel da Literatura em 1993, que escreveu: “Racismo sem raça é uma escolha. Ensinado, é claro, por aqueles que precisam dele, mas, ainda assim, é uma escolha. Os que o praticam não seriam nada sem ele (…)”.

Mas tenhamos esperança. Os Estados Unidos são também a terra de Obama e Luther King, de James Baldwin, Paul Beatty, Ernest Hemingway e Eugene O’Neill. De Mailer e de Chomsky . De Denzel Washington e Robert de Niro, Louis Armstrong e Bruce Springsteen. Do jazz, da internet e das Levi’s.

E são também donos da mais antiga Constituição escrita do mundo, que declara: “Consideramos estas verdades como evidentes, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade”.

Aqui chegados, que conclusões podemos tirar da atual crise nos Estados Unidos?

Proponho que recordemos Allen Ginsberg, um dos principais poetas da Beat Generation, que, há cerca de 65 anos, escrevia:

 “A América está coberta de mentiras
Os jovens pensadores são maus tipos,
cheios de ideias sórdidas.
A América criou a bomba atómica e lançou-a ao mundo.
Ezra Pound está certo, a nação é um manicómio.”

Esta é apenas uma visão possível da América.

Na próxima semana falarei de Portugal.

 

Jornalista