Martha C. Nussbaum. Em defesa das Humanidades

Martha C. Nussbaum. Em defesa das Humanidades


Martha C. Nussbaum assina um manifesto intenso contra o desinvestimento que a mentalidade que vai prevalecendo por estes dias estabelece relativamente às humanidades, face ao inútil ou não (imediatamente) rentável.


A democracia precisa das humanidades porque nos relatos, nas narrativas que os romances, os contos, toda a literatura e, bem assim, o ensaio filosófico proporcionam, encontramos, não raramente, o ponto de vista do outro, levando-nos, de tal sorte, a poder internalizá-lo e a tê-lo devidamente em conta, sem o pretender eliminar, na nossa conduta e deliberação cidadã. A literatura e a filosofia são, assim, verdadeiros sustentáculos da coesão social e da democracia (“as artes e as humanidades desempenham uma função central na história da democracia, mas mesmo assim, muitos pais, na actualidade, têm vergonha de que os seus filhos estudem arte ou literatura. Ainda que a filosofia e a literatura tenham mudado o mundo, é muito mais provável que um pai ou uma mãe se preocupem porque os seus filhos nada sabem de negócios do que por terem uma insuficiente formação em matéria de humanidades”).
A democracia precisa das humanidades, desde logo carece da maiêutica socrática por sistema desde os primeiros passos na escola, porque serão estas que fornecerão músculo, pensamento crítico face a toda a autoridade (indiscutida), ou a todo o condicionamento grupal face ao qual, em muitos casos, qualquer dissensão é punida.
A democracia precisa das humanidades porque a vida é vida examinada, vida com sentido e o aparato de tipo filosófico/teológico/literário é, aqui, absolutamente insubstituível.

A democracia precisa das humanidades porque, através delas, a imaginação – e se quisermos, em especial a imaginação moral – não enfraquecerá e, por consequência, impedirá que haja homens e mulheres invisíveis numa sociedade (os que não têm voz, minorias, etc.): “se o verdadeiro choque de civilizações reside, como penso, na alma de cada indivíduo, onde a cobiça e o narcisismo combatem com o respeito e o amor, todas as sociedades modernas estão a perder a batalha a ritmo acelerado, pois estão a alimentar as forças que dão impulso à violência e à desumanização, em lugar de alimentar as forças que dão impulso à cultura da igualdade e do respeito. Se não insistimos na importância fundamental das artes e das humanidades, estas desaparecerão, porque não servem para ganhar dinheiro. Só servem para algo muito mais valioso: para formar um mundo no qual valha a pena viver, com pessoas capazes de ver os outros seres humanos como entidades em si mesmas, merecedoras de respeito e empatia, que têm os seus próprios pensamentos e sentimentos, e também com nações capazes de superar o medo e a desconfiança em prol de um debate guiado pela razão e pela compaixão” (p.189).

A democracia precisa das humanidades porque em sociedades cada vez mais complexas e plurais conhecer a história do outro, as principais convicções da sua mundividência, a sua cultura, a sua religião/tradição, a sua língua é essencial para sociedades pacificadas (“estão a produzir-se mudanças drásticas naquilo que as sociedades democráticas ensinam aos seus jovens, mas trata-se de mudanças que ainda não se submeteram a uma análise profunda. Sedentos de dinheiro, os estados nacionais e os seus sistemas de educação estão a descartar certas aptidões que são necessárias para manter viva a democracia. Se esta tendência se prolonga, as nações de todo o mundo em breve produzirão gerações inteiras de máquinas utilitárias, em lugar de cidadãos plenos com capacidade de pensar por si próprios, possuir um olhar crítico sobre as tradições e compreender a importância dos sucessos e sofrimentos alheios. O futuro da democracia à escala mundial está preso por um fio”, p.20)

A democracia precisa das humanidades porque o humano não é assim tão bonzinho e precisa de instituições/disciplina(s) capazes de o poderem motivar/contrariar e enquadrar num quadro de respeito pelo outro, sempre fim, nunca meio (“parece que esquecemos o que significa acercarmo-nos do outro como a uma alma, mais que como um instrumento utilitário ou um obstáculo para os nossos próprios planos. Parece que esquecemos o que significa conversar com alguém dotado de uma alma, com outra pessoa que consideramos igualmente profunda e sofisticada (…) o que me proponho destacar é o que significa essa palavra [alma] para Alcott e Tagore: refiro-me às faculdades do pensamento e da imaginação, que nos fazem humanos e que fundam as nossas relações como relações humanas complexas em lugar de meros vínculos de manipulação e utilização. Quando nos encontramos numa sociedade, se não aprendemos a conceber a nossa pessoa e a dos outros desse modo, imaginando mutuamente as faculdades internas do pensamento e a emoção, a democracia estará destinada ao fracasso, pois esta baseia-se no respeito e interesse pelo outro, que por sua vez se fundam na capacidade de ver os demais como seres humanos, não como meros objectos”, pp.24-25)

Martha C. Nussbaum assina, assim, um manifesto intenso contra o desinvestimento que a mentalidade que vai prevalecendo por estes dias estabelece relativamente às humanidades, face ao inútil ou não (imediatamente) rentável. Fá-lo, em todo o caso, a partir, em grande medida, da experiência norte-americana, onde o ensino das artes liberais, ainda assim, resiste, via filantropismo, à perda estatal, país no qual a tradição das humanidades presentes em grande medida no Secundário e Ensino Superior é uma realidade (isto é, onde a não especialização imediata, onde as disciplinas humanísticas sempre estão, mesmo em cursos de ciências duras, e onde as empresas buscam a abertura mental, a capacidade criativa, a flexibilidade e imaginação de quem vem das humanidades, onde em muitos cursos, no Superior, há turmas muito pequenas para que sucessivos trabalhos sejam corrigidos/apurados, muita discussão em sala de aula).

Sendo este o seu ponto de partida, também a experiência indiana (Tagore) é muito referenciada, face ao que o teatro, a dança, a literatura podem fazer para a compreensão entre as pessoas. Com vários dados sobre recentes experiências da psicologia, Nussbaum foge de qualquer idealização, encontra o humano tal como é, e é justamente por isso que lhe importa não negligenciar as artes liberais. Valoriza muito as histórias infantis, os desenhos animados que se dão a ver às crianças, não se ficando na elaboração abstracta, buscando o currículo e a escola que devemos prosseguir.
Autora que tem escritos numa linha rawlsiana, e com estudos feitos sobre as capacidades, com Amartya Sen, Nussbaum enfatiza, ainda, a importância da responsabilidade individual numa educação conseguida. 

[seguimos aqui a edição castelhana Martha C. Nussbaum, Sin fines de lucro – por qué la democracia necessita de las humanidades, Katz, 2010; agora, já com tradução portuguesa: “Sem fins de lucro”, Edições 70, 2019].