Cultura. “Não podem ir à TV mentir e dizer que está tudo bem. Não está tudo bem”

Cultura. “Não podem ir à TV mentir e dizer que está tudo bem. Não está tudo bem”


Os profissionais do setor cultural e artístico juntaram-se ontem em 17 cidades na Vigília Cultura e Artes. Um protesto silencioso e feito em turnos de dez pessoas com uma pergunta: “E se tivéssemos ficado sem cultura?”.


O tempo não é propício, não permite sequer, grandes aparatos. Mas os profissionais do setor cultural e artístico que ao longo das últimas semanas se uniram  em várias formas de protesto nas redes sociais — primeiro substituindo as suas imagens de perfil por espaços em branco, depois disseminando, em hashtag, a mensagem “unidos pelo presente e futuro da cultura em Portugal” — saíram ontem à rua para um primeiro protesto. Organizados em turnos de 30 minutos, durante todo o dia de ontem um grupo de dez pessoas segurou, frente às escadarias da Assembleia da República, em Lisboa, um conjunto de cartazes pretos, desinfetados a cada vez que mudavam de mãos. A mensagem era em todos a mesma: “E se tivéssemos ficado sem cultura?”

As reivindicações incluem, nas palavras de Anaísa Raquel – fundadora da Ação pela Cultura 2020 e organizadora desta vigília que se estendeu ao Porto e a outras 15 cidades – “a reformulação da Lei do Trabalho, uma política cultural transparente, um verdadeiro diálogo entre o setor e o Ministério da Cultura, o fim dos recibos verdes, um verdadeiro fundo de emergência, que não seja atribuído através de concursos e que atinja de facto todos os profissionais que ficaram sem trabalho nos últimos meses”.

Sem trabalho e “sem apoios”, sublinha. “Porque aquilo a que chamam linha de emergência foi um concurso, e um concurso muito parecido àquilo que já acontece [em circunstâncias normais] na DGArtes, em que existe um valor global que vai ser atribuído a quem apresente propostas de trabalhos. De facto foram apresentadas propostas e de facto alguns foram contemplados, mas sabemos perfeitamente que nem metade”.

Entrados no terceiro mês de paralisação do setor, sem qualquer tipo de fonte de rendimento, muitos destes profissionais enfrentam agora situações dramáticas.

A atriz Teresa Coutinho, uma das participantes na vigília, integra a Ação Cooperativista – Artistas, Técnicos e Produtores, um dos muitos grupos informais nascidos durante a pandemia como plataformas de entreajuda financeira aos profissionais do setor em maior dificuldade. E descreve uma situação calamitosa:_“As medidas urgentes têm de ser aplicadas agora porque há muitas pessoas a passar dificuldades. E isto é real, não é abstração. Há mesmo pessoas a viver mal”. E explica:_“Falando do que chega à Ação Cooperativista, que é o que conheço para poder falar, temos tido casos de muita privação e de muita dificuldade. De pessoas que estão muito aflitas porque não podem pagar rendas, muito aflitas porque não podem fazer as suas compras e não sabem como lidar com isso, muito aflitas porque não sabem quando vão voltar a trabalhar nem que condições vão voltar a trabalhar”.

A_conversa é interrompida pelo ruído do aplauso que os profissionais itinerantes fizeram questão de dar aos profissionais da cultura. Entre polícias e as dez pessoas que faziam então o turno, segurando cartazes negros. Também eles se manifestavam junto à entrada lateral da Assembleia: “Não queremos dinheiro, queremos que nos deixem trabalhar. Queremos voltar a trabalhar para podermos voltar a pagar-vos impostos”.

De volta a Anaísa e aos apoios primeiro de 1 milhão de euros, depois de 1,7 milhões, distribuídos por concurso:_“Esses são apoios que deviam acontecer sempre, porque o Ministério da Cultura tem por obrigação utilizar parte do seu orçamento no apoio à criação e no fomento à cultura. Neste momento, não falamos de fomentar a cultura. Ao terceiro mês de toda a gente ter sido mandada para casa, falamos de uma questão de sobrevivência. Há muita gente que já não consegue pagar a renda desde aí, há muita gente que já não consegue comer”.

A frase repete-se, vem-se repetindo. Do CENA-STE, Rui Galveias mantém, ao telefone com o i, o alerta que vem sendo feito pelo sindicato. Segundo o dirigente sindical, até ao início da próxima semana estarão prontos para poderem ser divulgados os resultados de um novo inquérito aos profissionais do setor que oferecerão, por fim, a prova estatística do que desde o final de março se vem repetindo. “Continuam a ser as associações ou algumas câmaras municipais que conseguem ter canais de ajuda e fornecimento de refeições a ajudar essas pessoas. Infelizmente, o Ministério da Cultura e o Governo precisam de números para perceberem a realidade. Porque eles dizem que as medidas estão a chegar e nós dizemos que não. Vamos continuar a dizer que as medidas não estão a chegar, mas vamos quantificar os casos, transformá-los em dados concretos”.

As reivindicações para o setor são todas as que vêm há anos sendo feitas, às quais se junta a de medidas urgentes e efetivas para responder à situação em que mergulhou grande parte dos profissionais do setor. “A ministra vir dizer que não vai haver mais fundo de emergência é gravíssimo. Porque foi claramente insuficiente”, diz ainda Teresa Coutinho. “E acho que ainda não se está a sentir o pior, acho que se vai sentir ainda mais, que as pessoas ainda vão ficar pior, porque não vai haver retoma, as pessoas não vão voltar a trabalhar de um dia para o outro”.

Ao seu lado, a atriz Sandra Faleiro alerta para o que será o resultado da ausência de um efetivo apoio de emergência: “O que o Governo arrisca ao não ajudar os artistas e os profissionais do setor de uma forma geral é a fazer com que muita gente desista. Com que pessoas passem fome a sério, o que é muito injusto porque a vida toda fizemos sacrifícios para conseguirmos manter de alguma forma a cultura viva. Posso dizer que trabalho 12, 13 horas por dia em muitas alturas da minha vida para conseguir fazer projetos meus, com grande sacrifício. Posso dizer que sou uma privilegiada, para já porque tenho uma família que me apoia e depois porque consegui juntar algum dinheiro. Mas a maior parte não é. E sei que, se isto não mudar, o meu privilégio, o dinheiro que tenho de parte, vai acabar. Não é uma fonte inesgotável”, sublinha a atriz. “Há sempre um mal entendido nesta questão dos subsídios: os subsídios são atribuídos por concursos e o que estamos a fazer é a trabalhar para o Governo, estamos a trabalhar para um país, não é um favor que nos estão a fazer. O nosso papel é tão importante como o da educação ou o da saúde”.