A morte de Valentina, a menina de nove anos encontrada num eucaliptal, inquietou muitos de nós. O país ficou suspenso durante dias, enquanto voluntários e forças de segurança procuravam vestígios que pudessem indicar o paradeiro da criança que, segundo foi dito, já teria fugido de casa uma vez. Pensou-se que pudesse ser uma nova fuga e que, das duas uma, ou aparecesse entretanto, ou fosse encontrada sem vida, por acidente. A tese de rapto, ainda sob o auspício do caso da Maddie, que ocorreu na Praia da Luz, também foi adiantada, se bem que menos explorada – talvez por ausência de indícios que apontassem nessa direção e porque os investigadores ainda não haviam descartado outras possibilidades mais imediatas. Mas, mesmo assim, esta possibilidade que pairava era assustadora, porque nos coloca inseguros perante a concretização desta eventualidade, ensombrando a proteção que pensamos ter quanto aos nossos filhos.
Ninguém estava preparado para a primeira parte do desfecho desta história que acabou por se tornar macabra: afinal, tudo indica que o pai foi o responsável por ter posto fim à vida da sua filha, com a conivência e participação da madrasta. Tudo isto na presença dos restantes filhos, coagidos a relatarem uma versão dos acontecimentos construída pelo pai, isentando-o de qualquer possível suspeita.
Segue-se a averiguação dos factos e a instrução do processo judicial, para que os responsáveis por este crime sejam julgados e lhes seja aplicada a pena correspondente no Código Penal.
Em Portugal, cerca de dez mil menores foram vítimas de violência doméstica entre 2014 e 2018. A tendência destes números é para aumentar, segundo a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Mais de metade destes menores foram agredidos pelos próprios progenitores, na casa onde vivem, onde deveriam estar em segurança e protegidos.
Segundo estes números, o que aconteceu a Valentina também pode vir a acontecer a outras crianças que convivem diariamente com a agressão e a violência, perpetradas por quem devia protegê-las com a própria vida.
Haverá alguma forma de podermos antever estas tragédias?
Até que ponto uma denúncia de maus-tratos pode ser tida como prova de uma inevitabilidade fatal?
Tive oportunidade de ver um programa televisivo, na minha opinião demasiado especulativo, onde a jornalista se debruçou sobre a responsabilidade que a mãe da criança teria tido na sua morte ao enviar a filha para casa do pai, à revelia do que estava determinado pelo tribunal, numa tentativa de distribuição de responsabilidades pelas entidades que deveriam, antecipadamente, ter evitado este fim: escola, Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Peniche, vizinhos, amigos…
Segundo a psicóloga convidada para comentar estas circunstâncias, as escolas deveriam ter mecanismos de deteção e de supervisão de possíveis situações de agressão. Supondo que na escola de Valentina houvesse um assistente social ou um especialista clínico residente, esta situação teria sido evitada? O comportamento temperamental do pai e a sua conduta criminosa teriam sido evidentes para estes especialistas, se nem para os vizinhos o foram?
O caso de Valentina é miserável pela indiferença e pelo alheamento. Algo a que todos estamos votados, mas que incide com maior relevância junto das estruturas familiares mais desorganizadas e, por isso, mais frágeis. A procura, quase compulsiva, de outros culpados para além dos evidentes resume-se à arte de escarafunchar a miséria humana que testemunhamos na nossa sociedade e que, por mais leis e entidades reguladoras que possam ser constituídas, fará parte da condição humana.
Os números gritantes de violência física e psicológica só aumentam porque paira no subconsciente do agressor a impressão de impunidade derivada da ausência de denúncia por parte da criança e dos que podem, eventualmente, ter conhecimento indireto das agressões. Uma vez sinalizados, os agressores ou suspeitos de agressão deveriam ser acompanhados em consultas especializadas na avaliação e análise de aspetos comportamentais que reabilitassem o indivíduo para as suas competências parentais. Acima de tudo, conceder às crianças a esperança de terem pais que possam cumprir com as suas obrigações no crescimento e desenvolvimento psicológico, afetivo e físico dos filhos. Mas também compreender o que leva um pai ou uma mãe a violentar um(a) filho(a) quando, instintivamente, deveria contrariar este impulso ou vontade.
A perspetiva de termos um número significativo de pais com personalidades “temperamentais”, prontos a explodir a qualquer momento, magoando crianças que não se podem defender e outras que escolhem não o fazer, por medo, ensombra um futuro diagnóstico que venha a realizar-se. Ao Estado pede-se que seja mais interventivo na apresentação de soluções para dirimir estas percentagens, mas sem cair na tentação de se substituir aos pais, resgatando as crianças e colocando-as em instituições à guarda do Estado ao primeiro sinal de alerta. Investir na compreensão de tal comportamento e providenciar apoio e assistência clínica a pais emocionalmente vulneráveis e pressionados pelas suas dificuldades, muitas vezes na origem destes comportamentos violentos ou adições que resultam em violência sobre os outros, pode ser uma via a reforçar.
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