#1
Ao comentar Les ruínes ou méditations sur les révolutions des empires de Volney, François Hartog sublinha uma substancial modificação temporal. Já não se trata, de facto, de olhar para as ruínas do passado e de encontrar para elas uma função positiva, como em tantas representações onde a Grécia ou Roma surgiam apenas naquilo que delas sobrou – como em Roma Antiga de Giovanni Paolo Pannini, onde em todos os quadros se vêem pessoas a passear no meio das ruínas da Antiguidade Clássica – mas de um estranho futuro anterior, futuro já presente, digamos assim, no olhar daquele que contempla as cidades contemporâneas:
“Em seguida, ele salta do passado antigo para um futuro distante. Quem sabe se um dia, nas margens abandonadas do rio Sena ou do Tamisa, um viajante não chorará, como ele hoje chora no lugar em que um dia foi Palmira? Face ao que parece ser uma «cega fatalidade», o viajante não pode deixar de estar atormentado por uma «melancolia profunda». Desse modo, a humanidade não andaria senão de ruínas em ruínas”
A modificação para que Hartog alerta passa, como facilmente se percebe, por compreender as ruínas, já não como restos do passado que sobreviveram à fúria do tempo, mas como algo em que o próprio tempo presente se encontra inscrito: é este, doravante, que é já uma ruína futura.
Esta imagem das nossas cidades prometidas a uma destruição futura parece ter feito o seu caminho ao longo da modernidade. Dela encontramos ecos, por exemplo, em Paul Valéry, no bastante comentado La Crise de l’Esprit, em Spengler, mas também em Walter Benjamin. Este último, na sua Pequena História da Fotografia, refere-se assim ao trabalho fotográfico de Atget sobre Paris:
“Mas, curiosamente, quase todas as suas fotografias estão vazias. Vazias a Porte d’Arcueil junto às muralhas, vazias as escadarias monumentais, vazios os pátios, vazias as esplanadas dos cafés, vazia, como tinha de ser, a Place du Tertre. Não são lugares solitários, mas lugares sem atmosfera: nestas fotografias, a cidade foi esvaziada como uma casa à espera de um novo inquilino”
Uma mistura de medo, de íntimo terror, mas também de desejo – desejo que nos fazia querer ver as cidades assim, experimentar, por um momento que fosse, esses locais desprovidos de vida e atmosfera – parece ter coordenado essa imagem insistente dos nossos lugares comuns prometidos a uma destruição devastadora. Podemos sempre perguntar-nos, certamente, se esta imaginação moderna não nascia, também, de uma razão política: aos tumultos urbanos, ao rumor da revolução que tomava de assalto as ruas e as praças, respondia-se com esse imaginário de “lugares sem atmosfera”, com essas cidades esvaziadas de vida onde, consequentemente, revolução alguma se poderia dar.
Hoje, durante a epidemia, somos continuamente inundados, um pouco por toda a parte, por uma declinação desse imaginário moderno: cidades esvaziadas são filmadas lentamente, ruas outrora cheias encontram-se agora desprovidas de qualquer vida, nos locais onde antes víamos a azáfama diária, as idas e vindas intermináveis de pessoas e carros, vemos apenas lacunas, faltas que se inscrevem no tecido das coisas e das ruas; não tanto esses locais que, na comparação de Benjamin, são como casas “à espera de um novo inquilino”, como nas imagens de Atget – mas Benjamin dirá igualmente que se tratam de locais de um crime qualquer –, mas mais lugares profundamente inabitáveis que já não toleram a presença humana.
Não nos enganemos, no entanto. Sob o tom vagamente apocalíptico que todos os dias vemos em imagens e sons esconde-se a mesma metáfora bélica. Porque ao lado destas cidades desertas que nos são apresentadas vemos, igualmente, o retorno da natureza: animais passeiam-se nas ruas esvaziadas, retornam às praias, reclamam para si o espaço que era antigamente o nosso como se fossem agora os dignos cidadãos de um mundo posterior ao homem. Mas já não vimos isto antes, não nos chega este retorno como um eco vindo de outra parte? W.G. Sebald, na sua História Natural da Destruição, relata o que aconteceu em Colónia e Hamburgo pouco tempo depois de uma destruição sem igual se ter abatido sobre estas duas cidades alemãs durante a segunda guerra mundial:
“No fim da guerra, os terrenos de Colónia em ruínas estavam transformados pela densa vegetação que rebentara- como «pacíficos caminhos rurais muito marcados», abriram-se as ruas nesta nova paisagem. Ao contrário das insidiosas catástrofes que hoje proliferam, a capacidade de regeneração da natureza parece não ter sido afectada pela tempestade de fogo. Com efeito, no Outono de 1943, poucos meses após o grande fogo, em Hamburgo muitas árvores e arbustos, particularmente castanheiros e lilaseiros, apresentaram uma segunda floração.”
Se estas imagens não conseguem pensar uma relação com o antigo reino da natureza que não passe pela metáfora bélica (esta só surge subtraindo o homem, este só surge devastando-a), elas também contaminam as cidades vazias que nos são apresentadas em termos trágicos: deixaram de ser um espaço comum, um espaço onde o comum se pode construir, para passarem a ser um cenário de guerra. Cada bairro, cada rua, cada prédio, é agora o lugar onde se trava uma guerra sem fim contra um inimigo que surge sempre mascarado (e que tem o seu agente duplo no assintomático). É uma operação Clausewitz higiénica, em que a frente de guerra se estende a todo o território da cidade, com os seus generais que todos os dias nos comunicam do esforço de guerra, as suas diferentes divisões que avançam a diferentes ritmos em território inimigo e a arregimentação de toda a população. Esta militarização do espaço urbano, em que o inimigo está em todo o lado e a frente de guerra em lado algum, faz de nós todos soldados que cumprem ordens, membros de uma cadeia militar que não pode ser colocada em causa. E dá conta, digamos, assim, da estranha sensação de se passear por uma cidade nestes moldes: numa guerra total, não há descanso possível, qualquer momento é momento de combate contra o inimigo, qualquer rua é território incerto, que já pode ter sido tomada pelo inimigo. Militarização do espaço, militarização do tempo.
#2
“Em todas essas horas eu vagueei pelas ruas como uma espécie de fantasma”. Tanto Cioran como o filósofo Emmanuel Levinas contribuíram para um pequeno conceito que pode ser usado para esclarecer, na medida do possível, a estranha experiência que é andar por estas ruas de onde a vida se retirou: a insónia. Esta parece afirmar-se apenas na distância, por mais que um único pensamento, como defende Cioran, pese mais que toda a existência: estás acordado, mas não totalmente consciente; estás consciente, mas não totalmente acordado – também defendia que o homem que era o único animal em toda a criação em que isto acontece: querer dormir mas não conseguir. E é ela que abre um espaço e um tempo sem escapatória possível, uma presença incontornável, uma existência incapaz de se esconder das coisas, que nos olham, agora, do fundo de uma ironia que nada quer connosco. Andas pela rua vazia como um fantasma, como um criminoso que desobedeceu a uma qualquer ordem desconhecida: estás sempre em território inimigo. Não queres senão ir embora, sair – mas a insónia não tem saída e não te deixa saída.
“A impossibilidade de rasgar o sussurro invasivo, inevitável e anónimo da existência manifesta-se em certos momentos em que o sono foge aos nossos apelos. Velamos quando quando não há mais nada a velar e apesar de não haver motivo para velar. O facto nu da presença oprime: estamos sujeitos ao ser, obrigados a ser. Desligamo-nos de todos os objectos, de todo o conteúdo, mas há (il y a) a presença. Esta presença que surge atrás do nada não é nem um ente, nem o funcionamento da consciência no vazio, mas o facto universal do há (il y a), que abraça as coisas e a consciência”
O insone vagueia, por mais que ande não tem sítio para ir, desconhece as ruas, os prédios, não vê luz alguma, está tomado, capturado, preso a um único pensamento que não o deixa em paz, que se insinua em todos os locais por onde passa: está numa noite que nunca poderá ser estrelada.
É a experiência do soldado na frente de guerra. Para este, a cidade é o território sem fim da insónia onde o ciclo da vida se encontra interrompido.
#3
A epidemia erigiu-se no único tema possível. Ao esvaziar das ruas e das praças respondeu-se com uma verdadeira “tempestade de papel” (no nosso caso, uma tempestade digital), com a quantidade de reflexões, de relatos, de publicações – chegará a vez dos livros de análise –, de depoimentos sobre todos os pontos de vista possíveis sobre o vírus e a epidemia: arregimentação dos corpos e, ao mesmo tempo, dos espíritos, fogo de barragem contra o perigo, contra o inimigo. Nesta frente, a militarização entrou em todos os recessos do corpo e da alma: a poesia contra a quarentena, a cultura contra o vírus, o nosso corpo em rebelião contra a epidemia.
A Grande Guerra ficou conhecida também por um fenómeno curioso: a Kriegslyrik, perto de 50 mil poemas de guerra escritos e publicados durante a mesma. Uma imensa vontade de representação e de construção de narrativas parece ter capturado uma grande parte da população europeia da altura. Nada disto aconteceu com a epidemia, é certo, mas podemos sempre reconduzir a grande bateria digital a esse mal-estar que se instalou: mesmo quando o tema não é a epidemia e o vírus, eles espreitam, funcionam como uma espécie de não-dito que condiciona todas as palavras, todos os actos, por mais distantes que pareçam: o pior dos poemas está já contaminado, o abraço proibido dado na rua não encontra qualquer distância face à epidemia, os gestos descontrolados descobrem esse mal-estar.
A narrativa, em Henry James, anda sempre à volta de um segredo escondido que permite todo o tipo de actuação excêntrica. Talvez não fosse má ideia construir um modelo no centro do qual se encontraria, como segredo visível, a epidemia e o vírus – que são sempre estrangeiros, corpos desconhecidos – e que fosse evoluindo em círculos concêntricos a partir do estado de quase paralisia em que alguns se encontram até ao círculo mais distante, o daqueles para quem a vida continua como se nada fosse, como se nada de novo estivesse a acontecer: a insídia do estrangeiro captura todos os pontos fortes dos corpos (quando estão na rua), mas, mais do que isso, cria uma alma para esse novo corpo. Nada escapa às declinações da epidemia.
Um amigo meu acredita que a quarentena torna possível aquela solidão que é condição do pensamento. O modelo seria, talvez, aquele de Boccaccio, no Decameron, ou o de Thomas Mann em A Montanha Mágica (não responde este também a um mal-estar? Não acaba por se transformar num sismólogo que vê, nas lentas modificações das placas tectónicas, o que se anunciava para breve?): fugindo à peste, no caso de Boccaccio, escapando para um local isolado, em Thomas Mann – mas não se trata propriamente de escapar, a metáfora talvez seja outra: distanciar-se da azáfama para ganhar saúde, num sentido bastante literal – seria possível criar algum distanciamento, seria possível medir o que está a acontecer. Lá longe, portanto, o mar violento das mortes, das quarentenas, dos estudos científicos, das opiniões. Aqui, a possibilidade de perspectivar isso tudo. Mas o viral chega antes do vírus e contamina tudo: todos os pensamentos, todos os actos. Encontramo-nos cravados, soldados, a esta epidemia.
#4
Atrás dos diversos lemas que pretendem unificar toda a sociedade esconde-se um modelo determinado de guerra: a civil. À privatização total do espaço – não há, em rigor, espaço público nesta epidemia –, que leva à dissolução, ou à suspensão do comum, acresce o perigo que todo e qualquer um representa para todo e qualquer um. De forma paradoxal, o açambarcamento que se verificou nos primeiros dias é consequência directa das palavras de ordem que, gritadas aos ouvidos, nos diziam que estamos todos juntos, que isto, a epidemia, diz respeito a todos, que ela não escolhe quem ataca e que, por causa disso, não há ninguém a quem isto não diga respeito.
Da mesma forma, a guerra sempre foi um fenómeno moral e não tem faltado moralismo. Os franceses não tomavam banho, os alemães não tinham maneiras a comer, os ingleses eram snobs. Mas o inimigo, agora, já não se encontra no exterior. Ele é, doravante, o vizinho que não usa máscara, aquele que espirra sem cuidado algum, o que viola a quarentena e tenta ir ter com os amigos, o irresponsável que está demasiado próximo, os miúdos que vão para a praia quando deviam estar recolhidos em casa. Cada um destes – e estes estão agora tão próximos de cada um de nós que é impossível não nos cruzarmos com eles na rua – coloca em causa a “saúde pública”; isto é, em última análise, a minha.
#5
As análises de Marie-José Mondzain têm o mérito de colocar no centro da produção imagética contemporânea o medo. É este, segundo ela, que é constantemente reproduzido como forma de junção dos diversos elementos de uma sociedade e nele contém-se uma temporalidade paradoxal: “a da antecipação na duração pela representação da crueldade, da dor e da morte por vir, e a da detenção do tempo, a petrificação diante da ameaça que paralisa”.
“O medo é, desta feita, ambivalente nos seus recursos: detém o tempo e alimenta-se gulosamente de visões horríficas.
O fluxo aterrador das antecipações figurativas, das aparições dantescas, dos phasmas fantasmáticos, desdobra-se num presente de inexistência, ofegante, onde o aliciamento dos medos alterna com a corrida à felicidade”
Na economia visual que garante a reprodução do medo esta epidemia não trouxe, na realidade, nada de novo: cidades vazias, comboios de camiões carregados de mortos para os crematórios, pessoas encerradas em casa, discursos infindáveis sobre a maior crise económica desde 1929 (que virá aí, com toda a certeza): tudo isso, ou somos nós, a nossa realidade e o nosso presente, ou, prometem-nos, seremos em breve. De uma forma ou de outra, estas imagens já se encontravam presentes no imaginário contemporâneo. Talvez a única diferença resida no objecto do medo.
Porque, como afirma Mondzain, esta produção imagética do medo induz sempre a sua figura e as suas identificações: “as do delinquente com o terrorista, do emigrado com o violador e o ladrão, como outrora o Judeu com o usuário e o avarento, e o Negro com o antropófago”. Mas que figura produziu a epidemia, senão uma mais larvar, inacessível ao olhar, à identificação, impossível de localizar? É desta forma que o medo se imiscui em todo o tecido social, penetra em todos os locais, condiciona todo o território da cidade (e já não apenas os bairros degradados): doravante, todos são, em potência, o negro, o delinquente, o violador ou o ladrão, todos são o assintomático que espalha a doença.