Das democracias liberais às democracias iliberais

Das democracias liberais às democracias iliberais


Numa semana em que, no Brasil, Jair Bolsonaro nomeia um Diretor-Geral da Polícia Federal e um Ministro da Justiça com uma proximidade, pessoal e familiar, ao Presidente brasileiro que geram fundados receios quanto a uma efectiva separação de poderes vindoura naquele país da América Latina, numa altura em que a Hungria parece situar-se, em definitivo,…


A prova de que dificilmente se pode falar em progresso, pelo menos sem uma extrema prudência, quando nos referimos a realidades como a política ou a moral pode ser bem verificada na passagem ou transformação a que estamos, não sem perplexidade, a assistir, nos últimos anos, em várias partes do globo, de democracias liberais a, ou em democracias iliberais. Da euforia de uma democratização em larga escala no pós-queda do muro de Berlim, a um refluxo de alguns dos efeitos da globalização e da crise financeira e económico-social de 2008, com a recuperação de autoritarismos que, com demasiada facilidade, haviam sido colocados no baú da História foi, afinal, um passo. 

Além do voto, a democracia liberal reclama uma grande atenção aos procedimentos, seja na clara separação de poderes, no multipartidarismo, no respeito pelas minorias, na existência de uma imprensa livre, em tribunais independentes, oposição a sério, checks and balances, freios e contrapesos. Os cidadãos necessitam de uma forte fiscalização dos governos, de árbitros que não permitam abusos por parte destes. Ora, e pegando nos exemplos fornecidos por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como morrem as democracias (Vogais, 2019), muitos deles de uma história muito recente (ainda que sem poder aludir às mudanças, reforçando os perigos denunciados, em países como a Hungria), na Hungria, após regressar ao poder em 2010, o primeiro-ministro Víktor Orbán preencheu o Ministério Público, o Tribunal de Contas, o Gabinete do Provedor de Justiça, o Instituto Nacional de Estatística e o Tribunal Constitucional, instituições nominalmente independentes, com aliados partidários. O governo de Órban expandiu o tamanho do Tribunal Constitucional de 8 para 15 juízes, mudou as regras de nomeação para que o Partido Fidesz no governo pudesse nomear, sozinho, os novos juízes e depois ocupou as novas posições com apoiantes do Fidesz. Na Polónia, o Partido Lei e Justiça, quando regressou ao poder em 2015, colonizou o Tribunal Constitucional, num golpe mais do que duvidoso, fazendo com que as suas medidas não mais fossem vetadas. 

O modo mais extremo de fazer dos árbitros reféns é arrasar de vez os tribunais e criar tribunais novos. Em 1999, o governo de Chávez convocou eleições para uma Assembleia Constituinte que, em violação de uma decisão prévia do Supremo Tribunal, outorgou a si própria o poder de dissolver todas as outras instituições estatais, incluindo aquele tribunal. Receando pela sua sobrevivência, o Supremo anuiu e considerou o acto constitucional. A presidente do Supremo Tribunal, Cecília Sousa, demitiu-se, declarando que o tribunal havia «cometido suicídio para evitar ser assassinado».«Mas o resultado é o mesmo. Está morto», disse. Dois meses mais tarde, o Supremo Tribunal foi dissolvido e substituído por um novo Supremo Tribunal de Justiça. No entanto, nem isso foi suficiente para garantir uma magistratura flexível, pelo que, em 2004, o governo de Chávez expandiu a dimensão do Supremo Tribunal de 20 para 32 lugares e preencheu os novos cargos com apoiantes «revolucionários» leiais. Foi o suficiente. Ao longo dos nove anos seguintes, nem uma decisão do Supremo foi contra o governo. 

Se recuarmos um pouco no tempo, vemos alguns exemplos do que agora parece prosperar. No Perú a aliança entre o líder dos serviços de informações secretas, Montesinos, com o Executivo de Alberto Fujimori levou a que estes serviços filmassem em vídeo centenas de políticos da oposição, juízes, deputados, empresários, jornalistas e editores a pagar ou receber subornos, a entrar em bordéis, ou a realizar outras actividades ilícitas – e usou em seguida as gravações para os chantagear. 

Também manteve três juízes do Supremo Tribunal, dois membros do Tribunal Constitucional e um número «estonteante» de juízes e procuradores públicos na sua folha de pagamentos, entregando estipêndios mensais em dinheiro vivo em suas casas. Tudo isto era feito em segredo; à superfície, o sistema judicial peruano funcionava como qualquer outro. Mas, na sombra, Montesinos ajudava Fujimori a consolidar o poder. E houve ainda o caso Perón, na Argentina, com a destituição de juízes do Supremo Tribunal, por alegada prevaricação, e a mudança para magistrados amigos. Nunca mais teve entraves à sua governação.

Os líderes fortes, que falam a linguagem da rua, que não recorrem a argumentos abstractos, que prometem devolver o esplendor e a lua, vociferam e congregam a ira, identificando os inimigos, nós e eles, e trazendo todas as soluções para, num repente, tudo limpar de cima a baixo podem ser muito atractivos; mas não faríamos mal em estarmos atentos às regras, aos procedimentos, às formas, à arquitectura constitucional e legislativa, à racionalidade que impeçam estes salvadores da pátria de deixar ruínas difíceis de voltar a recompor, em tempo breve.