Mesmo quando o título de um livro parece, por si só, um programa, senão um verdadeiro statement, de recorte sombrio – A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer (de Stig Dagerman, republicado pela VS – Vasco Santos Editor, 2018) é possível colher, no interior da obra assim nomeada, momentos de puro encontro, suspensão do tempo, verdade apenas, a escultura/forma nua, a arte da vida cinzelada e colocada à tona, com que nos damos: "A vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo. As suas possibilidades só são limitadas se me ponho a contar o número de palavras ou livros que a morte me dará ainda tempo de acender. Mas por que me hei-de eu pôr a contar? No fundo, o tempo de nada serve, inútil instrumento de medida (…) Na verdade nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. O encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de uma criança, o frio gume da beleza – nada disso tem horas e minutos. Tudo se passa como se não houvesse tempo.
Que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida"(pp.30-31). Este excerto poderia vindicar e explicar, por antonomásia, a perspectiva de Thomas Nagel de que a brevidade da vida não é argumento que certifique o seu absurdo, e não apenas, aqui, porque para o filósofo se as coisas não têm sentido por vivermos 81 anos não seriam 800 que nos valeriam (apenas prolongariam o absurdo), mas porque, como se expressa, neste passo, de modo absolutamente penetrante, o que conta, os momentos em que o eterno desce e plana entre nós, não é uma estatística, mas um tempo superior ao tempo, a suspensão deste, o toque Absoluto – que interessa viver mais um dia, perguntava Etty, no lager, porque era da cura dos pacientes e dos famintos, do estar a seu lado mesmo no cenário mais sinistro, da força, do desejo, do imperativo, do encontro desmedido com estes que assomava o tocar o tecto.
A vida como liturgia, esta como a criança implicada no jogo, que emerge no balão à procura do qual vai, é todo nesse jogar, é, apenas é – a rosa é sem porquê -, a estatística não conta coisa nenhuma, a verdade das coisas não é matemática, é poética como lembrava o bardo, "nem a vida é mensurável, nem viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. Como há-de sê-lo a vida humana?" (pp.31-32), ou, se se preferir, "que outra tarefa a do homem, senão viver?" (p.32), quer dizer, ainda, que vale a vida (por) ela mesma.
O que importa, para Dagerman, é a pessoa "saber-se livre" e um "fim autónomo" (p.33), sendo que para que a ameaça da morte não a aniquile, esta não deve ter como critérios (de uma existência bem sucedida) "pontos de apoio tão precários como o tempo e a glória" (p.36). Para ser livre, a pessoa, parece o autor reclamar, deve ter um "elemento próprio"(p.36), tal como o peixe ou o pássaro têm o seu. Mas "onde está hoje a floresta na qual o ser humano prove que pode viver livre, e não limitado pelos rígidos moldes da sociedade?" (p.37). A pessoa, hoje por hoje, é apenas um ponto de uma massa (anónima), determinado exclusivamente pela sociedade em que vive, sem direito, ou capacidade de reivindicar(-se) um "elemento próprio", a sua singularidade, a sua especificidade? Ainda Rousseau e o original homem bom, corrompido pela sociedade? Curiosamente, neste ponto o escritor adopta um posicionamento gradualista: "por enquanto, [se desejo ser livre é] necessário que o faça no interior desses moldes [da sociedade]" (p.37) – não pode sair para uma eventual floresta, só é livre, pelo menos "por enquanto", no interior de uma sociedade (note-se que Dagerman viveu na Suécia, mas em tempos sombrios, nomeadamente sendo contemporâneo da II Guerra Mundial; talvez com o "por enquanto" querendo dizer que em época de ameaças extremas não se é livre fugindo para uma floresta; não existe a possibilidade da ida para uma floresta, mas mesmo que a houvesse, talvez assim a pessoa não fosse livre, ainda que um dia essa possa ser uma opção livre, num mundo já diverso daquele seu contemporâneo), mas, sendo literato, deverá procurar "empurrar as palavras contra a força do mundo"(p.37) – ou seja, denunciar, criticar, mobilizar, pelas palavras, face aos opressores (e num tempo em que os povos embarcaram em opções tenebrosas, dos nacionalismos e totalitarismos corrosivos; de aí, a necessidade de "empurrar as palavras contra a força do mundo"). O imperativo categórico, reconhecido por este homem das letras, obrigá-lo-á a agir, a pensar agir, sem o concurso de mais ninguém se necessário for – "sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco. Se o número não me esmagar, sou, também eu, um poder" (p.37). E, ultima ratio, se nada mais puder fazer senão silêncio – a censura, a ditadura, a proibição dos livros, de jornais livres não foram no século XX, ou ainda hoje em muitos lados, uma ameaça meramente teórica -, então este "será ilimitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo" (p.38). "É este o meu único consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a lembrança do milagre da libertação leva-me como uma asa a um fim que me inebria: um consolo que seja mais do que apenas isso, e mais vasto que uma filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver" (p.38). Razão de viver: uma carícia na pele, o fulgor da beleza, o encontro do amado – tudo isso abole, suspende, relativiza o tempo (o eterno tocado pelo sujeito) – que interessa um dia a mais (viver não é um facto, é um bem, M. Filomena Molder)?; a existência de liberdade ("a lembrança do milagre da libertação", o milagre de perceber a possibilidade, mesmo que dolorosa, do gesto livre, mesmo que contendo consequências duras, do gesto livre), mesmo que muito condicionada: no caso do literato, as palavras arrancadas ao mais fundo e melhor de si, atiradas contra a "opressão do mundo"; mesmo quando estas caladas (pelos opressores) nunca o silêncio vivo poderá ser negado. A pessoa, fim em si mesma, livre mesmo que condicionada, lutando pela singularidade do seu canto (o "elemento próprio"), ainda que a cidadela seja defendida em, ou pelo, silêncio. Fruindo os instantes suspensivos do tempo.