Daniel Innerarity. A era da incerteza

Daniel Innerarity. A era da incerteza


Ensaio de uma sociedade perplexa, à procura de novos instrumentos para se conhecer melhor, e que só com recurso ao reforço dos sistemas de inteligência colectiva, e da convivência com a complexidade, encontrará futuro.


1. A crise da representação política é, antes de mais, uma crise epistemológica: as sociedades em que vivemos passaram a ser, em boa medida, grandes desconhecidas. A individualização dos modos de ser, a pluralização dos interesses, a diversificação dos consumos tornou as categorias a que recorríamos para explicar a sociedade insuficientes, ou obsoletas. Até porque, na actual busca da singularidade, a pessoa/cidadão não pretende ver-se inscrita em uma única lógica de acção, ou uma filiação completamente excludente. A classe, a profissão, a filiação ideológica ou a nacionalidade [categorias estas que] correspondiam a um mundo de status, a delimitações rígidas ou identidades excludentes como que se varreu no proscénio da história. Simultaneamente, contudo, como capta eleitores um partido, filiados um sindicato, clientes uma empresa, sem o recurso a um etiquetar excessivo, mas identificando as pessoas e grupos sociais com alguma precisão? Foi neste contexto que surgiu o big data, um manancial de dados, supostamente mais finos, recolhidos das pegadas digitais nomeadamente, acerca dos consumidores, que geraria uma imagem mais perfeita/exata acerca destes. E, no entanto, vemos como coletivos procuram, deliberadamente, contornar e manipular esses mesmos dispositivos que geram os dados que refletiriam definitivamente a pessoa/cidadão. Ora, um dos problemas da publicidade gerada a partir daqui é que não leva em conta a decisão da pessoa deixar de fumar, por exemplo, partindo do pressuposto do que o que está permanecerá inalterado – e continuando a fazer publicidade ao tabaco (aquele dado consumidor). Precisamos de novos conceitos, categorias para entender a sociedade; carecemos de fazer novas e melhores perguntas, de afinar o que queremos saber com as estatísticas, de mais conseguida teoria, de ulterior discussão – em realidade, "quando não entendemos a sociedade, medimo-la"(p.56), obliterando, todavia, que "os números não são apenas matemática; também fazem política. As práticas do cálculo não são formas neutrais do social. Os algoritmos produzem e representam o que deve ser considerado importante e valioso. As estatísticas presumem reflectir uma realidade objectiva, mas são construções seletivas que em parte produzem essa realidade" (escreve Daniel Innerarity, em Política para perplexos, p.59). Pensemos num exemplo muito concreto: os rankings das universidades, que privilegiam o modelo anglo-saxónico de universidade centrada na investigação, em detrimento de outras funções sociais (p.60). A hierarquia (universitária) a que vamos chegar, em uma dada seleção, parte pois deste pressuposto vinculado à investigação. A ordenação, se escolhêssemos outro critério, com as mesmas centenas de universidades, daria um resultado bem diverso [Yascha Mounk dá o exemplo de Harvard e da Filosofia Política: em vez de os pontos, as estrelas serem atribuídas, aos docentes nesta área, por exemplo, pelo facto de alguém ir junto dos mais novos, nos liceus, promover, persuadir acerca do regime democrático hoje abalado de algum modo, é a publicação entre especialistas e iniciados o factor mais relevado na progressão académica] . E é essa escolha do pressuposto, do critério, daquilo que entendemos mais importante de averiguar e concluir que é a verdadeira determinante, sobre a qual valeria a pena gastarmos tempo a deliberar; não nos emancipámos para o big data – que oferece conclusões deterministas sobre o sujeito, como se este não fosse capaz de um acto de liberdade e de se abalançar a novas preferências (de vida). Sem a consciência desta nossa ignorância e deste mister que temos pela frente – que Daniel Innerarity, em Política para perplexos, publicado pela Porto Editora, nos ajuda a compreender – não iremos atenuar a brecha, muito problemática, diagnosticada, desde há muito, entre representantes e representados. Representantes, já agora, como assinala Yascha Mounk, em Povo vs Democracia (editado pela Lua de Papel, 2019), que vêem cada vez menos do mundo associativo, social, das Igrejas, dos sindicatos, sem uma identidade ideológica minimamente clara e articulada, profissionalizando-se na burocracia ou intendência interna dos partidos, que não será o que mais interessa à generalidade dos cidadãos.

2. Estes últimos, contudo, depositam, não raro, expectativas excessivas e muitas vezes impossíveis de cumprir por políticos a quem não faltem, sequer, conhecimento e competência. Se acabámos de verificar como é difícil, hoje por hoje, conhecer a nosso universo social, por outro lado é importante que tenhamos a noção das imensas instâncias de poderes com que nos deparamos em qualquer sociedade avançada, as interconexões globais, as consequências de cada decisão, as demandas contraditórias do ambiente e da economia, do Direito ou das empresas. Os parlamentos estão bastante manietados: pelo crescente poder dos burocratas; porque os bancos centrais desempenham um papel cada vez maior; em virtude de as organizações e tratados internacionais serem de enorme relevância – e isto para além do devido controlo judicial (Mounk, 2019, p.80) : "Esta é uma das razões pelas quais o desejo democrático está tão confuso: não há cabeças para guilhotinar, nem «fuga para Varennes" para impedir, nem palácio de Inverno para assaltar, e mesmo que se pudesse fazer tudo isto a transformação social continuava a ser uma tarefa pendente. Já não existe um ponto de Arquimedes para mover o mundo e por isso os conspiradores, os revolucionários e os controladores são personagens de outros tempos" (Innerarity, 2019, p.137). A dominação não é absoluta. Onde há votantes, hackers, tuiteiros, accionistas o poder não se encontra completamente ausente dos dominados. A crítica à Igreja ignora a era secular; a crítica aos políticos elude como, ou quanto, os mercados governam; a denúncia de um agente económico concreto fantasia que este pode dirigir os mercados de modo unipessoal.

3. Face ao vigor da economia e ao pluralismo cultural, constata Innerarity, a política retraiu-se. A capacidade configuradora da política retrocede, perigosamente, em função das suas aspirações e à função pública que lhe é atribuída. Há um défice sistémico da política, escassez da inteligência colectiva. Vivemos entre "a euforia tecnocientífica e o analfabetismo de valores cívicos"(p.176). Mais: "é patente uma incapacidade crónica de compreender as transformações sociais, antecipar os cenários futuros e formular um projeto para conseguir uma ordem social inteligente e inteligível"(pp.176-177). A história deixou de ter um caminho, deixou de ser linear, de possuir leis compreensíveis, de progredir (em linha recta). Já não estamos a caminho de. O actual sistema político não parece, contudo, demasiado preocupado com o papel que possa caber-lhe depois das actuais transformações. Há, pois, uma necessidade de que a política responda com clareza sobre a função que cumpre e que não pode ser desempenhada por outros sistemas e a forma que deve adoptar para não se tornar irrelevante. (p.178) O conceito de governança tem regressado como estratégia para a política recuperar uma força configuradora e transformadora que parece estar a perder. Neste contexto, é necessário – quando se fala da necessidade de novas formas de governar dentro e para lá do estado nacional, regular os mercados, novas formas de organização interna das empresas, a função do Direito num mundo globalizado – "repensar em toda a sua complexidade a teia formada pela hierarquia, o mercado e as redes, que já não podem ser pensados separadamente. A porosidade entre Estado e sociedade ou entre estados e espaço internacional deu lugar a uma densidade de interdependências para cuja compreensão e gestão os instrumentos desenvolvidos num mundo que estava menos interligado são insuficientes. O desafio consiste em entender e governar processos de comunicação e cooperação no espaço entre actores cujas ações são interdependentes. Como integrar os diferentes actores e até que ponto? Como articular diversas esferas sociais (economia, cultura, política, meios de comunicação) e os diferentes níveis institucionais?" (pp.179-180).

4. Esta é a “era da incerteza”, aquela em que não há âncoras institucionais que, no entender de muitos cidadãos, sejam de confiança absoluta e se gera uma ansiedade muito partilhada – uma incapacidade da pessoa se projetar e configurar o futuro, presa a um presente onde um mal-estar sem que se consiga identificar a fonte sufoca o indivíduo -, e em que não apenas o conhecimento – naufragando num infinito oceano de informações, dados, conhecimento tanto relevante, como secundário, reclamando uma boa “comunidade de intérpretes”, entre os quais sólidos jornalistas, mas num tempo em que “a única utopia viva é a desintermediação” – mas também a vontade se debilitam, entre a aceitação acrítica do devir social, sob a máxima darwiniana de que o que melhor se adapta permanece, ou a recusa completa de qualquer possibilidade colocada, a cada momento, sob a mesa (sempre rejeitada, espelhar simplismo). Innerarity reforça a lição de Lipovetsky: “os seres humanos de sociedades anteriores à nossa viveram com um futuro talvez mais sombrio, mas a estabilidade das suas condições de vida – por muito negativas que fossem – permitia-lhes pensar que o porvir não ia trazer-lhes demasiadas surpresas” (p.13), em uma estabilidade muito menos nervosa do que a (nossa) atual estação. Não ajuda, ademais, que saibamos que a qualquer momento uma “pandemia, a instabilidade financeira, um ataque terrorista, as alterações climáticas que também não conhecem fronteiras, o espaço aberto das redes sociais, a comunicação instantânea em que parece não haver lugar para o segredo ou a intimidade” conspirem para que a desordem seja a nova ordem que está para dar e durar. 

Entretanto, e revolucionário neste contexto seria isso, recuperávamos a busca pela virtude da serenidade, tanto em termos pessoais, como das lideranças e, outrossim, a nível coletivo e procurávamos sistemas mais sofisticados de inteligência coletiva que não apenas nos defenderiam de abusos de máquinas, mas de excessos de nós mesmos: o piloto depressivo que se abateu contra os pirinéus, e com ele arrastou tanta gente, pôde fazê-lo, porque ficou só na cabine e, na sequência do 11 de Setembro, conseguiu que ninguém pudesse entrar nesse mesmo local, sendo que a máquina não impediu o piloto de atirar o avião e as vidas para o abismo: a ideia de que o mal, o negativo está sempre, e só, do lado de fora contém uma boa dose de miopia.