Mortes acima do esperado podem ser até cinco vezes mais do que as vítimas de covid-19

Mortes acima do esperado podem ser até cinco vezes mais do que as vítimas de covid-19


Nova análise defende que excesso de mortalidade desde o início da pandemia é superior ao que tem sido calculado. Estudo coordenado por António Vaz Carneiro aponta para 2400 a 4000 mortes a mais entre 1 março e 22 de abril. “O terror absoluto em que a sociedade portuguesa mergulhou impede as pessoas de irem ao…


O aumento real da mortalidade nas últimas semanas poderá ser bastante superior ao que tem sido calculado até aqui. O alerta é feito num novo estudo publicado esta segunda-feira na revista Acta Médica Portuguesa, que estima que entre 1 de março e 22 de abril morreram mais 2400 a 4000 pessoas do que seria expectável. Tendo em conta que até esse dia estavam confirmadas 785 vítimas mortais de covid-19, a equipa liderada por António Vaz Carneiro, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, conclui que o excesso de mortalidade foi 3,5 a cinco vezes superior ao que pode ser explicado pelo novo coronavírus, com o aumento dos óbitos a verificar-se sobretudo acima dos 65 anos e em particular nos distritos de Aveiro, Porto e Lisboa e de uma forma mais expressiva nos distritos mais envelhecidos.

Uma parte significativa das mortes poderá ter resultado do adiamento da procura de cuidados de saúde e do cancelamento de consultas e cirurgias não urgentes, conclui o estudo. “Não é profissionalmente, cientificamente e eticamente possível ignorar esta indução de mortalidade excessiva por os doentes não terem cuidados”, diz ao i António Vaz Carneiro, defendendo uma gestão global das necessidades de saúde em tempos de pandemia e uma campanha massiva de informação para evitar que o medo da população em dirigir-se aos hospitais continue a levar a um aumento das mortes. “O terror absoluto em que a sociedade portuguesa mergulhou impede as pessoas de irem ao hospital. Onde estão os doentes?”, questiona o médico, que dirige o Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública e o Instituto de Saúde Baseada na Evidência, ambos da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. “Tínhamos milhares de doentes nas consultas, nos corredores, nos hospitais. Os exames cardiológicos pararam, não são colocados pacemakers, um doente com suspeita de cancro não consegue fazer uma biópsia”, alerta.

Comparar com o verão Na semana passada um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública estimou que entre 16 de março e 14 de abril morreram em Portugal mais 1255 pessoas do que seria esperado numa situação sem pandemia. A nova análise tem por base o mesmo sistema nacional de vigilância de mortalidade, onde são carregados diariamente dados sobre os óbitos registados no país, mas adota uma metodologia diferente. Em vez de estimar o número de mortes em excesso tendo por base a mortalidade no mesmo período em anos anteriores, os autores defendem que estando o país em estado de emergência, com menos pessoas a circular na estrada, a trabalhar e menos atividade nos hospitais, o cenário base não pode ser o dos meses de março e abril em anos anteriores.

Para uma maior aproximação ao que seria expectável em termos de mortalidade, os investigadores optaram por usar o histórico de mortalidade nos meses de verão, onde habitualmente há menor mortalidade. “A atual situação de confinamento pode ser vista como tendo semelhanças com o período de férias de verão, devido à diminuição da população que está a trabalhar, menor risco de doenças infecciosas (no verão devido ao calor e no confinamento por causa da quarentena), menos tráfego urbanos e acidentes e menor número de consultas”, lê-se no artigo, publicado na revista científica da Ordem dos Médicos.

Menos 191 mil doentes com pulseira vermelha Além dessa análise, os investigadores calcularam o potencial impacto da quebra nas idas às urgências que se verifica desde o início de estado de emergência, com cerca de menos 122 mil episódios de urgência por dia nos hospitais portugueses. Entre 1 de março e 22 de abril houve menos 191 666 doentes triados com pulseira vermelha, menos 30 159 com pulseira laranja e menos 160 736 com pulseira amarela, os doentes com situações clínicas de maior gravidade de acordo com a triagem de Manchester usada para estabelecer prioridade de atendimento. Tendo em conta o histórico de mortalidade nas 24 a 48 horas após admissão nos hospitais, os autores admitem que a quebra de doentes graves nas urgências poderá corresponder a pelo menos 1291 mortes. “Sabemos que 40% das idas à urgência são situações que não apresentam gravidade, mas os outros doentes deviam lá estar”, diz António Vaz Carneiro, considerando que esta deve ser outra frente no reforço da sensibilização da população para a importância de procurar cuidados de saúde.

No artigo, a equipa aponta causas possíveis para o excesso de mortalidade em linha com as que vêm sendo identificadas por outras equipas: além das vítimas mortais de covid-19, outras mortes por covid-19 que possam não ter sido detetadas, a falta de acesso a cuidados de saúde ou mesmo um efeito de este inverno terem havido menor mortalidade que em anos anteriores. António Vaz Carneiro considera pouco provável que exista uma subestimação significativa das mortes por covid-19 do país, considerando que os dados da quebra de atividade e menor procura dos cuidados de saúde sugerem que a maior parte das mortes acima do expectável serão resultado do afastamento dos cuidados de saúde. “A parte de leão serão os eventos agudos, pessoas em enfartes agudos de miocárdio, acidentes vasculares cerebrais, descompensação de diabetes ou doentes com doenças crónicas agudizadas e é provavelmente este segundo o principal fator, porque este aumento de mortalidade só se verifica acima dos 65 anos. Isto sugere claramente que os doentes não estão a ter acesso a cuidados médicos”.

Ordem defende task-force Para o bastonário da Ordem dos Médicos, o estudo vem reforçar a necessidade de um plano de resposta aos doentes não covid, a começar pelos doentes prioritários mas abrangendo todas áreas. Miguel Guimarães defende a criação de uma task-force que permita redesenhar a resposta aos doentes, com circuitos separados para covid-19 mas sem continuar a adiar consultas, cirurgias e exames complementares de diagnóstico. “Precisamos de um plano para recuperar doentes prioritários e são muitos, nem que seja pedindo a ajuda fora do SNS. O SNS tem capacidade de resposta mas há também capacidade sobrante no setor privado e social. Não pode haver um estigma. A privada fará aquilo que o Ministério da Saúde quiser e estará disponível para trabalhar com o Ministério da Saúde pelos valores que o Ministério disser que são os mais razoáveis”, diz Miguel Guimarães, defendendo também que o reforço do investimento no SNS é premente. “Se investirmos na saúde teremos mais segurança para salvaguardar futuros desafios, de outra forma temos uma manta em que puxo um bocadinho para tapar os pés e fica descoberto do outro lado. Para tratarmos a covid foi preciso não operar doentes que também poderiam precisar de cuidados intensivos, mas tem de haver um equilíbrio. É o momento de reavaliarmos o sistema de saúde, a capacidade nacional de cuidados intensivos, aproveitar a transformação digital e pensarmos que para fazer tudo o que é necessário vai ser preciso investir já”.

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